quinta-feira, 27 de julho de 2017

Eterno em mim

Quisera ser um vendaval
nas tuas lágrimas, amor,
para sofrer contigo de forma igual,
a saudade de te saber calor,
de te sentir carnal.

Foste e és eterno em mim,
como sei sê-lo em ti,
a cada dia que vivamos,
feitos companheiros de abandono,
nos asfaltos dos que vivem
ao nosso lado.

Mas é a ti que me entrego,
a ti espero e desejo,
num manancial de ilusão
e de ingloria e vã tristeza,
dum olhar despido de valor,
que à mesa, se esvai,
feito pão esboroado,
migalha dum querer esfomeado.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Tu És em Mim Profunda Primavera

O sabor da tua boca e a cor da tua pele,
pele, boca, fruta minha destes dias velozes,
diz-me, sempre estiveram contigo
por anos e viagens e por luas e sóis
e terra e pranto e chuva e alegria,
ou só agora, só agora
brotam das tuas raízes
como a água que à terra seca traz
germinações de mim desconhecidas
ou aos lábios do cântaro esquecido
na água chega o sabor da terra?

Não sei, não mo digas, tu não sabes.
Ninguém sabe estas coisas.
Mas, aproximando os meus sentidos todos
da luz da tua pele, desapareces,
fundes-te como o ácido
aroma dum fruto
e o calor dum caminho,
o cheiro do milho debulhado,
a madressilva da tarde pura,
os nomes da terra poeirenta,
o infinito perfume da pátria:
magnólia e matagal, sangue e farinha,
galope de cavalos,
a lua poeirenta das aldeias,
o pão recém-nascido:
ai, tudo o que há na tua pele volta à minha boca,
volta ao meu coração, volta ao meu corpo,
e volto a ser contigo a terra que tu és:
tu és em mim profunda primavera:
volto a saber em ti como germino.

Pablo Neruda, in "Os Versos do Capitão"

domingo, 13 de dezembro de 2015

NOITE QUE ME SOBRA


Queria traduzir os silêncios
que te brotam entre os dedos,
enganar os compassos mortos,
soltar as vontades presas
e costuradas no parapeito do coração.

Queria beijar essa boca
que só em prova se sente,
chover no molhado do teu cheiro
e acender o fogo que sopra o amor
na ternura dos lençóis de cetim.

Queria fazer outro caminho
contigo, e no teu corpo,
soltar os poros da alma
e colher frutos de êxtase
num pomar de carinho.

Queria amanhecer contigo
e nas brechas do desalinho do tempo
dissolver o sono que me roubas,
porque… é tanta a noite
que me sobra nos braços!


ANTÓNIO CARLOS SANTOS,

in DA GEOMETRIA DO AMOR (Seda Publicações, 2015)

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

TOCA-ME

Toca-me meu amor
como se fora guitarra
Toca-me com amor
com corpo e com garra!
Faz das minhas veias cordas
e tange-as devagar
como fora meu corpo
para o despir...
para o beijar...
Ele geme muito baixinho!
cada acorde um beijo meu
cada nota uma saudade
de um doce carinho teu
Já faz tempo que te foste!
e meu Deus como sofri
Desse sítio não se volta
contigo também morri
A guitarra encostada nunca mais tocou…coitada
Mas fala sempre de ti!
e à noite ou à tardinha…vem às vezes andorinha
A lembrar-me o que esqueci
Muito caminho já fiz e outras guitarras escutei...
Mas um carinho tão grande 
uma música tão pura ainda não ouvi
E a guitarra meu amor eu nunca mais toquei.




MARGARIDA CIMBOLINI, in ARTE POESIA (Edições Oz Edy, 2015)

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Regresso sempre a ti...

Regresso sempre a ti, sempre que te penso
regresso ao lugar dos abraços inocentes
e se por acaso não te encontrar no calor das tardes de verão
haverei sempre de te encontrar no coração da poesia.

Regresso a ti, como tu me regressas de cada vez que ouço a nossa canção
de cada vez que as andorinhas cantam novas melodias na primavera.

Regresso ati e tu regressas-me no coração do poema
no silêncio das palavras que nunca fui capaz de te dizer.

SÃO GONÇALVES, in O SILENCIOSO CANTO DAS AVES MIGRATÓRIAS (a publicar)

terça-feira, 29 de setembro de 2015

ESPERANÇA


Naveguei por afluentes do teu corpo
Desaguei numa enseada de águas
Remoinhos de desejos.

Pairei nesse teu mar
Doce, quente e profundo
Na esperança de ancorar

Esperei
Amei
Até o tempo me deixar.



JOSÉ GABRIEL DUARTE, in O OUTRO LADO DE MIM (Chiado Ed., 2012)


quinta-feira, 24 de setembro de 2015

TOCA-ME


Sê em mim o começo
a alegria e a festa
Toca-me de leve
como um sopro
para que me incendeie
e te ilumine de raios
tempestades, emoções
Rouqueja-me os sons
do teu absoluto
e morre comigo
desta vez



EDGARDO XAVIER, in CORPO DE ABRIGO (Tema Originais, 2011)

O TEU RISO


Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas
não me tires o teu riso.


Não me tires a rosa,
a flor de espiga que desfias,
a água que de súbito
jorra na tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.


A minha luta é dura e regresso
por vezes com os olhos
cansados de terem visto
a terra que não muda,
mas quando o teu riso entra
sobe ao céu à minha procura
e abre-me todas
as portas da vida.


Meu amor, na hora
mais obscura desfia
o teu riso, e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso será para as minhas mãos
como uma espada fresca.


Perto do mar no outono,
o teu riso deve erguer
a sua cascata de espuma,
e na primavera, amor,
quero o teu riso como
a flor que eu esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.


Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
curvas da ilha,
ri-te deste rapaz
desajeitado que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando os meus passos se forem,
quando os meus passos voltarem,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas o teu riso nunca
porque sem ele morreria.


PABLO NERUDA, in POEMAS DE AMOR DE PABLO NERUDA


Trad. de Nuno Júdice-Ed. bilingue (Dom Quixote, 2010)