domingo, 2 de novembro de 2014

Pergunta-me

Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda o minuto de cinza
se despertas a ave magoada
 que se queda
 na árvore do meu sangue

Pergunta-me
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue

Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos

 Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente

Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer


 Mia Couto, in 'Raiz de Orvalho'

domingo, 1 de junho de 2014

Dias há para perceber o fundo do poço


Dias há para perceber o fundo do poço, 
a sede dos dias que se afundam, 
não se percebem. 

E o fundo do poço percebe-se 
que seja sede de dias. 
 
De alturas antigas 
que viajam em vertigem. 
 
Viajam nos nossos filhos, 
e na luz que nos protege 
da sede. 
 
A luz que descobre o fundo 
dos poços. 

A vertigem da descoberta 
abre-nos a boca timidamente 
e mata-nos a sede 
dia-a-dia, 

como se de um suave amor
incondicional
se tratasse. 

 Nuno Travanca

Poema de Amor


No amor, regras que contem,
Há uma só que não é vã
Amar hoje mais do que ontem
Mas bem menos do que amanhã

E eu num fado que isso guarde
Também acrescentaria
Amo-te mais cada tarde
Do que amei nascendo o dia.

E cada vez muito mais
Do que antes, mas tais requintes
São muito menos, ver vais
Do que nos dias seguintes

Com resultados tão plenos
Como somar dois e dois:
Muito mais e muito menos
Conforme "antes" e "depois"

No amor, regras que contem
Há uma só que não é vã:
Amar hoje mais do que ontem
Mas bem menos que amanhã.

(Vasco da Graça Moura)