quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

SONETO DO AMOR

Não me peças palavras nem baladas,
Nem expressões, nem alma... Abre-me o seio,
Deixa cair as pápebras pesadas
E entre os seios me apertes sem receio.

Na tua boca sob a minha boca, ao meio
Nossas línguas se busquem, desvairadas...
E que os meus flancos nus vibrem no enleio
Das tuas pernas ágeis e delgadas.

E em duas bocas uma língua...unidos,
Nós trocaremos beijos e gemidos,
Sentindo nosso sangue misturar-se.

Depois... abre os teus olhos, minha amada!
Enterra-os bem nos meus; não digas nada...
Deixa a vida exprimir-se sem disfarce!

José Régio

AMO-TE COMO UM PLANETA EM ROTAÇÃO DIFUSA

Amo-te como um Planeta em rotação difusa
E quero parar como servo ao chão.
Frágil cerâmica de poros soprados no teu hálito
Vasilha que ergues em tua mão de oleiro
Cálice que não pudeste afastar de ti.

Daniel Faria - in "Dos Líquidos"

AMO O CAMINHO QUE ESTENDES

Amo o caminho que estendes por dentro das minhas visões.
Ignoro se um pássaro morto continua o seu voo,
Se se recorda dos movimentos migratórios
E das estações.
Mas não me importo de adoecer no teu colo
E dormir ao relento entre as tuas mãos.

Daniel Faria in "Dos Líquidos"

Soneto

"Não pode Amor por mais que as falas mude
exprimir quanto pesa ou quanto mede.
Se acaso a comoção falar concede
é tão mesquinho o tom que o desilude.

Busca no rosto a cor que mais o ajude,
magoado parecer aos olhos pede,
pois quando a fala a tudo o mais excede
não pode ser Amor com tal virtude.

Também eu das palavras me arreceio,
também sofro do mal sem saber onde
busque a expressão maior do meu anseio.

E acaso perde, o Amor que a fala esconde,
em verdade, em beleza, em doce enleio?
Olha bem os meus olhos, e responde."


António Gedeão (1906-1997)

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Fanatismo


"Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer a razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

«Tudo no mundo é frágil, tudo passa...»
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastros:
«Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio e Fim!...»"


Florbela Espanca (1894-1930)

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Amor

"Perguntei a um sábio,
a diferença que havia
entre amor e amizade,
ele me disse essa verdade...
O Amor é mais sensível,
a Amizade mais segura.
O Amor nos dá asas,
a Amizade o chão.
No Amor há mais carinho,
na Amizade compreensão.
O Amor é plantado
e com carinho cultivado,
a Amizade vem faceira,
e com troca de alegria e tristeza,
torna-se uma grande e querida
companheira.
Mas quando o Amor é sincero
ele vem com um grande amigo,
e quando a Amizade é concreta,
ela é cheia de amor e carinho.
Quando se tem um amigo
ou uma grande paixão,
ambos sentimentos coexistem
dentro do seu coração."


William Shakespeare

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Ma Plus Belle Histoire d'Amour

"Du plus loin, que me revienne,
L'ombre de mes amours anciennes,
Du plus loin, du premier rendez-vous,
Du temps des premières peines,
Lors, j'avais quinze ans, à peine,
Cœur tout blanc, et griffes aux genoux,
Que ce furent, j'étais précoce,
De tendres amours de gosse,
Ou les morsures d'un amour fou,
Du plus loin qu'il m'en souvienne,
Si depuis, j'ai dit "je t'aime",
Ma plus belle histoire d'amour, c'est vous,

C'est vrai, je ne fus pas sage,
Et j'ai tourné bien des pages,
Sans les lire, blanches, et puis rien dessus,
C'est vrai, je ne fus pas sage,
Et mes guerriers de passage,
A peine vus, déjà disparus,
Mais à travers leur visage,
C'était déjà votre image,
C'était vous déjà et le cœur nu,
Je refaisais mes bagages,
Et poursuivais mon mirage,
Ma plus belle histoire d'amour, c'est vous,

Sur la longue route,
Qui menait vers vous,
Sur la longue route,
J'allais le cœur fou,
Le vent de décembre,
Me gelait au cou,
Qu'importait décembre,
Si c'était pour vous,

Elle fut longue la route,
Mais je l'ai faite, la route,
Celle-là, qui menait jusqu'à vous,
Et je ne suis pas parjure,
Si ce soir, je vous jure,
Que, pour vous, je l'eus faite à genoux,
Il en eut fallu bien d'autres,
Que quelques mauvais apôtres,
Que l'hiver ou la neige à mon cou,
Pour que je perde patience,
Et j'ai calmé ma violence,
Ma plus belle histoire d'amour, c'est vous,

Les temps d'hiver et d'automne,
De nuit, de jour, et personne,
Vous n'étiez jamais au rendez-vous,
Et de vous, perdant courage,
Soudain, me prenait la rage,
Mon Dieu, que j'avais besoin de vous,
Que le Diable vous emporte,
D'autres m'ont ouvert leur porte,
Heureuse, je m'en allais loin de vous,
Oui, je vous fus infidèle,
Mais vous revenais quand même,
Ma plus belle histoire d'amour, c'est vous,

J'ai pleuré mes larmes,
Mais qu'il me fut doux,
Oh, qu'il me fut doux,
Ce premier sourire de vous,
Et pour une larme,
Qui venait de vous,
J'ai pleuré d'amour,
Vous souvenez-vous ?

Ce fut, un soir, en septembre,
Vous étiez venus m'attendre,
Ici même, vous en souvenez-vous ?
A vous regarder sourire,
A vous aimer, sans rien dire,
C'est là que j'ai compris, tout à coup,
J'avais fini mon voyage,
Et j'ai posé mes bagages,
Vous étiez venus au rendez-vous,
Qu'importe ce qu'on peut en dire,
Je tenais à vous le dire,
Ce soir je vous remercie de vous,
Qu'importe ce qu'on peut en dire,
Je suis venue pour vous dire,
Ma plus belle histoire d'amour, c'est vous..."


Paroles et Musique de Barbara, 1966

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

EU E ELA

Cobertos de folhagem, na verdura,
O teu braço ao redor do meu pescoço,
O teu fato sem ter um só destroço,
O meu braço apertando-te a cintura;

Num mimoso jardim, ó pomba mansa,
Sobre um banco de mármore assentados.
Na sombra dos arbustos, que abraçados,
Beijarão meigamente a tua trança.

Nós havemos de estar ambos unidos,
Sem gozos sensuais, sem más ideias,
Esquecendo para sempre as nossas ceias,
E a loucura dos vinhos atrevidos.

Nós teremos então sobre os joelhos
Um livro que nos diga muitas cousas
Dos mistérios que estão para além das lousas,
Onde havemos de entrar antes de velhos.

Outras vezes buscando distracção,
Leremos bons romances galhofeiros,
Gozaremos assim dias inteiros,
Formando unicamente um coração.

Beatos ou pagãos, vida à paxá,
Nós leremos, aceita este meu voto,
O Flos -Sanctorum místico e devoto
E o laxo Cavaleiro de Faublas...

Cesário Verde in O Livro de Cesário Verde

MERIDIONAL - Cabelos

Ó vagas de cabelos esparsas longamente,
Que sois o vasto espelho onde eu me vou mirar,
E tendes o cristal dum lago refulgente
E a rude escuridão dum largo e negro mar;

Cabelos torrenciais daquela que me enleva,
Deixai-me mergulhar as mãos e os braços nus
No báratro febril da vossa grande treva,
Que tem cintilações e meigos céus de luz.

deixai-me navegar, morosamente, a remos,
Quando ele estiver brando e livre de tufões,
E, ao plácido luar, ó vagas, marulhemos
E enchamos de harmonia as amplas solidões.

Deixai-me naufragar no cimo dos cachopos
Ocultos nesse abismo ebânico e tão bom
Como um licor renano a fermentar nos copos,
Abismo que se espraia em rendas de Alençon!

E ó mágica mulher, ó minha Inigualável,
Que tens o imenso bem de ter cabelos tais,
E os pisas desdenhosa, altiva, imperturbável,
Entre o rumjor banal dos hinos triunfais;

Consente que eu aspira esse perfume raro,
Que exalas da cabeça erguida com fulgor,
Perfume que estonteia um milionário avaro
E faz morrer de febre um louco sonhador.

Eu sei que possuis balsâmicos desejos,
E vais na direcção constante do querer,
Mas ouço, ao ver-te andar, melódicos harpejos,
Que fazem mansamente amar e enlanguescer.

E a tua cabeleira, errante pelas costas,
Suponho que te serve, em noites de Verão,
De flácido espaldar aonde te recostas
Se sentes o abandono e a morna prostração.

E ela há-de, ela há-de, um dia, em turbilhões insanos
Nos rolos envolver-me e armar-me do vigor
Que antigamente deu, nos circos dos romanos,
Um óleo para ungir o corpo ao gladiador.

.......................................................................
.......................................................................

Ó mantos de veludo esplêndido e sombrio,
Na vossa vastidão posso talvez morrer!
Mas vinde-me aquecer, que eu tenho muito frio
E quero asfixiar-me em ondas de prazer.

Cesário Verde in O Livro de Cesário Verde
Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses

PROH PUDOR

Todas as noites ela me cingia
Nos braços, com brandura gasalhosa;
Todas as noites eu adormecia,
Sentindo-a desleixada e langorosa.

Todas as noites uma fantasia
Lhe emanava da fronte imaginosa;
Todas as noites tinha uma mania
Aquela concepção vertiginosa.

Agora, há quase um mês, modernamente,
Ela tinha um furor dos mais soturnos,
Furor original, impertinente...

Todas as noites ela, ó sordidez!
Descalçava-me as botas, os coturnos,
E fazia-me cócegas nos pés...

Cesário Verde in O Livro de Cesário Verde
Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

CANTIGA

Embora, Senhora, andeis
De finas telas vestida,
Por meus olhos sois despida.

De clara holanda vestis
Vosso corpo, linda Infanta,
Belo rocal de rubis
Vela-me a vossa garganta;
Trazeis manto de veludo,
Garbosa saia comprida,
Mas, apesar disso tudo
Por meus olhos sois despida.

Através de ricas vestes,
Que vos vestem, linda Infanta,
Adivinho os dons celestes
Do vosso corpo de santa;
Vossas vestes de cetim,
Vestes com que andais vestida,
De vidro são para mim:
Por meus olhos sois despida.

Vejo-vos só mãos e cara,
Mas não preciso ver mais
Para calcular a rara
Graça do que me ocultais...
Para quê rendas e folhos.
Senhora da minha vida,
Se por estes tristes olhos,
Por meus olhos sois despida?

Eugénio de Castro in Obras Poéticas de Eugénio de Castro
Parceria A.M. Pereira, Lda.
Lisboa

DE TARDE

Naquele pic-nic de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!

Cesário Verde in O Livro de Cesário Verde
Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses

domingo, 30 de novembro de 2008

CANÇÃO

Que noite d'encanto!
Que lúcido manto!
Que noite! amo tanto!
Seu mudo fulgor!
Oh! vem, ó donzela;
Não temas, ó bela,
Que a noite só vela
Quem sonha d'amor.

A luz infinita
Dos astros crepita,
Arqueja e palpita,
Serena a brilhar:
Assim o teu seio,
De casto receio,
De tímido enleio
Costuma pulsar.

A Lua, qual chama,
Que os seios inflama,
Fanal de quem ama,
Desponta no céu;
E a nítida fronte
Retrata na fonte
E estende no monte
Seu cândido véu.

E a fonte murmura
Por entre a verdura,
E ao longe d'altura
Lá desce a gemer:
Que sons, que folguedos!
Parece aos rochedos
Dizer mil segredos
D'infindo prazer.

Silêncio! o trinado
Lá solta enlevado,
Das noites o amado,
Da selva o cantor;
E o hino que entoa
No bosque ressoa,
E ao longe revoa,
Gemendo d'amor.

O facho da Lua
Co'a sombra flutua,
Avança e recua
No chão do jardim;
Nas asas da aragem,
Que agita a folhagem,
Recende a bafagem
Da rosa e jasmim.

Que noite d'encanto!
Que lúcido manto!
Que noite! amo tanto
Seu mudo fulgor!
Oh! vem, ó donzela;
Não temas, ó bela,
Que a noite só vela
Quem sonha d'amor.

Soares de Passos in Poesias
Lello & Irmão - Editores
Porto


SOY ESA FLOR

Tu vida es un gran río, va caudalosamente,
A su orilla, invisible, yo broto
dulcemente.
Soy esa flor perdida entre juncos y
achiras
Que piadoso alimentas, pero acaso ni
miras.

Cuando creces me arrastras y me muero en
tu seno,
Cuando secas me muero poco a poco en él
cieno;
Pero de nuevo vuelvo a brotar dulcemente
Cuando en los días bellos vas
caudalosamente.

Soy esa flor perdida que brota en tus
riberas
Humilde y silenciosa todas las primaveras.

Alfonsina Storni

PASIÓN

Unos besan las sienes, otros besan las
manos,
otros besan los ojos, otros besan la boca.
Pero de aquél a éste la diferencia es
poca.
No son dioses, que quieres? son apenas
humanos.

Pero, encontrar un día él espiritu sumo,
la condición divina en él pecho de un fuerte,
él hombre en cuya llama quisieras
deshacerte
como al golpe de viento las columnas de
humo!

La mano que al posarse, grave, sobre tu
espalda,
haga noble tu pecho, generosa tu falda,
y más hondos los surcos creadores de tus
sesos.

Y la mirada grande, que mientras te
ilumine
te encienda al rojoblanco, y te arda, y te
calcine
hasta el seco ramaje de los pálidos
huesos!

Alfonsina Storni

ESTA TARDE

Ahora quiero amar algo lejano...
Algún hombre divino
Que sea como un ave por lo dulce,
Que haya habido mujeres infinitas
Y sepa de otras tierras, y florezca
La palabra en sus labios, perfumada:
Suerte de selva virgen bajo el viento...

Y quiero amarlo ahora. Está la tarde
Blanda y tranquila como espeso musgo,
Tiembla mi boca y mis dedos finos,
Se deshacen mis trenzas poco a poco.

Siento un vago rumor...Toda la tierra
Está cantando dulcemente... Lejos
Los bosques se han cargado de corolas,
Desbordan los arroyos de sus cauces
Y las aguas se filtran en la tierra
Así como mis ojos en los ojos
Que estoy soñando embelesada...

Pero
Ya está bajando el sol de los montes,
Las aves se acurrucan en sus nidos,
La tarde ha de morir y él está lejos...
Lejos como este sol que para nunca
Se marcha y me abandona, con las manos
Hundidas en las trenzas, con la boca
Húmeda y tremblosa, con él alma
Sutilizada, ardida en la esperanza
De este amor infinito que me vuelve
Dulce e hermosa...

Poema da Alfonsina Storni - poeta Argentina

sábado, 29 de novembro de 2008

A TI

Oh! quão formoso me surge o dia
Lá quando a noite se inclina ao mar,
Quando na aurora que me extasia,
Teu belo rosto cuido avistar!
Não sei que esp'rança jamais sentida
Então me adeja no peito aqui;
É que na aurora saúdo a vida,
Outrora escura, sem luz, sem ti.

Correm as horas, a noite avança,
A Lua brilha com meigo alvor;
Então minha alma, que em paz descansa,
Divaga em sonhos d'ignoto amor.
No véu d'estrelas, na branca Lua
Meus olhos buscam olhos que eu vi,
E o pensamento longe flutua,
E uma saudade revoa a ti.

Eis que adormeço, e um anjo assoma
Todo cercado d'etérea luz;
De seus cabelos recende o aroma
Das castas rosas que o céu produz.
O céu me aponta, sorri-lhe a face;
Acordo, e o anjo foge dali;
Mas em meu peito logo renasce
Doce esperança que vem de ti.

Já pela terra surgem verdores,
Auras serenas baixam do céu,
As aves cantam novos amores,
Tudo se cobre dum flóreo véu;
E céus e terra, montes, paisagem,
Tudo a meus olhos, tudo sorri;
É que ali vejo só tua imagem,
É que hoje vivo, mas só por ti.

Talvez que eu sinta meu pobre enleio
Passar qual brilho de luz fugaz:
Que importa? ao menos dentro em meu seio,
Já morta a esperança, tu viverás.
Oh! sim, que os dias são mais serenos
Com tua imagem gravada ali;
Té mesmo a morte custará menos,
Junto ao sepulcro pensando em ti.

Soares de Passos in Poesias
Lello & Irmão - Editores
Porto

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Soneto do amor total - Repetição

"Amo-te tanto meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.
Amo-te enfim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.
Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.
E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude."


Vinícius de Moraes
Obras completas

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

A***

Acaso és tu a imagem vaporosa
Que me sorriu nos sonhos d'outra idade,
Como a luz da manhã sorri formosa
Nos espaços azuis da imensidade?
És tu esse astro que minha alma anela,
Que debalde busquei no amor da vida,
Qual busca o nauta bonançosa estrela
No meio da procela enfurecida?
Ah! se és esse ente que meu ser domina,
Se és essa estrela que meu fado encerra,
Se és algum anjo da mansão divina
Pairando sobre a Terra;
Já que baixaste a mim, já que a meu lado
Me apontaste sorrindo o etéreo véu,
Não me deixes na Terra abandonado,
Transporta-me ao teu Céu.


Soares de Passos in Poesias
Lello & Irmão - Editores
Porto

AMO-TE

Da aurora que surge com mantos lustrosos
Eu amo os sorrisos d'encanto sem fim;
Mas inda mais amo teus lábios formosos,
Teus lábios sorrindo d'amor para mim.

Eu amo as estrelas dos plainos infindos
Vertendo num lago sereno fulgor;
Mas inda mais amo teus olhos tão lindos
Vertendo em minh'alma seus raios d'amor.

Em serras, ao longe, cobertas de gelos,
As ondas eu amo d'argênteo luar;
Mas inda mais amo teus louros cabelos
Que em ombros de neve costumas soltar.

Da brisa das tardes eu amo os lamentos,
Dos bosques sombrios adoro o cantor;
Mas inda mais amo teus brandos acentos
Em ternos descantes, em quebros d'amor.

Eu amo a florinha d'ao pé da corrente,
E o cálice puro da nívea cecém;
Mas inda mais amo tu'alma inocente,
Tão pura que os anjos mais puros a não tem.

Eu amo dos astros a luz palpitante,
E as vagas longínquas arfando no mar;
Mas inda mais amo teu seio d'amante,
Unido a meu seio, d'amor a pulsar.

Eu amo na brisa, que doce murmura,
Colher os perfumes da rosa em botão;
Mas inda mais amo sorver a doçura
Dos beijos que, ardendo, teus lábios me dão.

Eu amo-te, eu amo-te, ó virgem celeste,
Meus dias na terra, minh'alma, são teus;
Eu amo-te, ó anjo, que à terra vieste,
O amor ensinar-me dos anjos dos céus.

Soares de Passos in Poesias
Lello & Irmão - Editores
Porto



quarta-feira, 26 de novembro de 2008

DECLARAÇÃO DE AMOR

Excita-me a tua presença, ó Árvore - ó Árvores todas!
Desejo-te (desejo-vos) como se fosses Carne, e eu Desejo.
Como se eu fosse o vento que preside às tuas bodas,
e te cicia em redor, e te fecunda num aliciante beijo.

Ponho os olhos em ti e entretenho-me a pensar que sou mãos,
todo mãos que te envolvem o tronco e te sacodem convulsivamente.
Requebras-te com volúpia, e os teus emaranhados cabelos louçãos
fustigam o ar como látegos, com toda a força a que este amor me consente.

Ó árvore minha débil! Ó prazer dos meus olhos extáticos!
Ó filtro da luz do Sol! Ó refresco dos sedentos!
Destila nos meus lábios as gotas dos teus ésteres aromáticos,
unge a minha epiderme com teus macios unguentos.

Desnuda-me a tua intimidade, ó Árvore! Diz-me a que segredos recorres
para te desenrolares em flores e em frutos num cíclico desvairio.
Porque é que tudo morre à tua volta e tu não morres,
e aceitas sempre o Amor com renovado cio.

Inicia-me nos teus mistérios, ó feiticeira dos cabelos verdes!
Ensina-me a transformar um raio de Sol em suculenta carnadura,
e nesses perfumes subtis que a toda a hora perdes,
prolongando o teu ser no ar que te emoldura.

É através de ti, ó Árvore, que celebro os esponsais entre mim e a Natureza.
É através de ti que bebo a nuvem fresca e mordo a terra ardente.
É de ti que recebo as leis do Amor e da Beleza.
Amo-te, ó Árvore, ó Árvore, apaixonadamente!

António Gedeão

NÃO PODE AMOR...

Ao Luís Vaz, recordando o convívio da nossa juventude

Não pode Amor por mais que as falas mude
exprimir quanto pesa ou quanto mede.
Se acaso a comoção concede
é tão mesquinho o tom que desilude.

Busca no rosto a cor que mais o ajude,
magoado parecer os olhos pede,
pois quando a fala a tudo o mais excede
não poder ser Amor com tal virtude.

Também eu das palavras me arredeio,
também sofro do mal sem saber onde
busque a expressão maior do meu anseio.

E acaso perde, o Amor que a fala esconde,
em verdade, em beleza, em doce enleio?
Olha bem os meus olhos, e responde.

António Gedeão

terça-feira, 25 de novembro de 2008

A UM TI QUE EU INVENTEI

Pensar em ti é coisa delicada.
É um diluir de tinta espessa e farta
e o passá-la em finíssima aguada
com pincel de marta.

Um pesar grãos de nada em mínima balança,
um armar de arames cauteloso e atento,
um proteger a chama contra o vento,
pentear cabelinhos de criança.

Um desembaraçar de linhas de costura,
um correr sobre lã que ninguém saiba e oiça,
um planar de gaivota como um lábio a sorrir.

Penso em ti com tamanha ternura
como se fosses vidro ou película de loiça
que apenas com o pensar te pudesses partir.

António Gedeão - Poesias

LE CHANT D'AMOUR

Voici de quoi est fait le chant symphonique de l'amour
Il y a le chant de l'amour de jadis
Le bruit des baisers éperdus des amants illustres
Les cris d'amour des mortelles violées par les dieux
Les virilités des héros fabuleux érigées comme des pièces
contre avions
Le hurlement précieux de Jason
Le chant mortel du cygne
Et l'hymne victorieux que les premiers rayons du soleil
ont fait chanter à Memnon l'immobile
Il y a le cri des Sabines au moment de l'enlèvement
Il y a aussi les cris d'amour des félins dans les jongles
La rumeur sourde des sèves montant dans les plantes
tropicales
Le tonnerre des artilleries qui accomplissent le terrible
amour des peuples
Les vagues de la mer où naît la vie et la beauté

Il y a là le chant de tout l'amour du monde

Apollinaire in Calligrammes
Poésies/Gallimard

sábado, 22 de novembro de 2008

POESIAS - 2 Eu ontem vi-te...

Eu ontem vi-te...
Andava a luz
Do teu olhar,
Que me seduz
A divagar
Em torno de mim.
E então pedi-te,
Não que me olhasses,
Mas que afastasses,
Um poucochinho,
Do meu caminho,
Um tal fulgor
De medo, amor,
Que me cegasse,
Me deslumbrasse,
Fulgor assim.

Ângelo de Lima, in Poesias Completas
Editorial Inova Limitada

FUMO

Longe de ti são ermos os caminhos
Longe de ti não há luar nem rosas,
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!

Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces, plenas de carinhos!

Os dias são Outonos: choram... choram...
Há crisântemos roxos que descoram...
Há murmúrios dolentes de segredos...

Invoco o nosso sonho! Estendo os braços!
E ele é, ó meu Amor, pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos!

Florbela Espanca - in Sonetos
Livraria Tavares Martins
Porto, 1974

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

FANTASIAS

Tenho, às vezes, desejos delirantes
De a todos te roubar, meu lírio amado!
E levar-te, em um vôo arrebatado,
Aos países fantásticos, distantes.

À Índia, China ou Irão, e os meus instantes
Passá-los a teus pés, grave e encruzado,
Num tapete chinês, aveludado,
Com flores ideais e extravagantes.

Nossa vida seria, ó pomba minha!
Mais leve do que a asa da andorinha...
E, nas horas calmosas, eu e tu...

Olhando o mar sereno, o mar unido,
Comeríamos os dois arroz cozido...
Embalados num junco de bambu!

(Gomes Leal) - in Claridades do Sul


quinta-feira, 20 de novembro de 2008

SE TU VIESSES VER-ME...

"Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti..."


Florbela Espanca - Charneca em Flor

sábado, 15 de novembro de 2008

o pássaro vindouro

Um pássaro é um pássaro, seja qual for o meridiano do lugar. Um rio é sempre um rio, seja qual for a latitude ou a extensão do seu curso. Uma oliveira é sempre uma oliveira, seja qual for a terra onde mergulhe as raízes. Mas em todas as palavras há um sentido oculto: para os poetas, por exemplo, o pássaro é um símbolo. Porque tem asas e canta. Porque é pequeno e frágil e inerme. Porque é belo, mesmo quando a plumagem não tem o colorido alacre dos cardeais e colibris. Porque é a imagem simples do que é bom e justo e verdadeiro. Porque é o amor.

Que podem entender, de um pássaro assim, os espíritos práticos com jeito para o negócio? Dentro deles, nunca habitou o Petit Prince: são pessoas irremediavelmente crescidas, a quem há que falar de gravatas, rendimentos, interesses bancários, aposentações, política interna e externa. É gente que, no respeito maquinal da Lei e dos Profetas, esqueceu o mandamento novo: «que vos ameis uns aos outros». Não os culpemos de terem, com a infância, perdido o jeito puro de aceitar naturalmente as flores, os pássaros, a vida: cresceram para um mundo adulto e sábio, onde todas as coisas têm o seu valor na balança comercial, onde os pássaros e flores são apenas pretexto para estudo e compêndios de botânica e zoologia.

Mas nem tudo está perdido. É ainda possível o milagre.

Um pássaro virá, na solidão nocturna, tocar-lhes com a asa o coração fechado. E à leveza do toque, hão-de abrir-se para o Mundo os olhos da cegueira, ansiosos da luz, que é amor, que é verdade e justiça. Com eles estará o Petit Prince, no doce mistério da infância reencontrada; e o cântico do pássaro vindouro será mais belo e forte do que nunca - porque eles são o filho pródigo finalmente regressado a casa de seu Pai.

(Daniel Faria) in discurso sobre a cidade
Editorial Presença

SEMPRE

Pensas que te não vejo a ti? Bom era!
Gravei tão vivamente n'alma a doce
E bela imagem tua, que eu quisera
Deixar de contemplar-te só que fosse
Um momento, e não posso, não consigo.

Foges-me, escondes-te e, que importa? esculpes
Mais fundo ainda os indeléveis traços!
Realça-te o retrato! E não me culpes!
Culpa-te antes a ti!... Sigo-te os passos!
Vejo-te sempre! trago-te comigo!

(João de Deus) in Campo de Flores Volume I
(livraria bertrand)

domingo, 9 de novembro de 2008

Soneto

"Se, para possuir o que me é dado,
Tudo perdi e eu própio andei perdido,
Se, para ver o que hoje é realizado,
Cheguei a ser negado e combatido.

Se, para estar agora apaixonado,
Foi necessário andar desiludido,
Alegra-me sentir que fui odiado
Na certeza imortal de ter vencido!

Porque, depois de tantas cicatrizes,
Só se encontra sabor apetecido
Àquilo que nos fez ser infelizes!

E assim cheguei à luz de um pensamento
De que afinal um roseiral florido
Vive de um triste e oculto movimento"



António Botto

Aves de Um Parque Real
As Canções de António Botto
Editorial Presença
1999

sábado, 8 de novembro de 2008

Boca Nem Sequer Beijada+Enchi Minhas Palavras...+Não era bem dos teus passos+O Poeta

BOCA NEM SEQUER BEIJADA!

Boca nem sequer beijada!
Ó boca vagamente aparecida!
Boca nascida
somente p'ra deixar na minha vida
a nostalgia de um lago
que nem gaivotas ensombram
nem auras leves agitam...

ENCHI MINHAS PALAVRAS...

Enchi minhas palavras de silêncio
e pela vez primeira nesta vida
teu coração rebelde as entendeu...

NÃO ERA BEM DOS TEUS PASSOS...

Não era bem dos teus passos
que a Poesia saía.

No entanto, se tu passavas,
na sombra azul dos teus passos
adivinhavam meus olhos
bailados de Poesia.

O POETA

Era nas suas mãos que terminavam
as coisas infinitas e as finitas.
Por isso as suas mãos eram abismos
aonde se perdia o Pensmento.

(Sebastião da Gama) in Cabo da boa Esperança
Edições Ática

CANTILENA

Cortaram as asas
ao rouxinol.
Rouxinol sem asas
não pode voar.

Quebraram-te o bico,
rouxinol!
Rouxinol sem bico
não pode cantar.

Que ao menos a Noite
ninguém, rouxinol!,
ta queira roubar.
Rouxinol sem Noite
não pode viver.

(Sebastião da Gama) in Cabo da Boa Esperança
Edições Ática

A Grande Dor Das Cousas Que Passaram

"A grande dor das cousas que passaram
transmutou-se em finíssimo prazer
quando, entre fotos mil que se esgarçavam,
tive a fortuna e graça de te ver.

Os beijos e amavios que se amavam,
descuidados de teu e meu querer,
outra vez reflorindo, esvoaçaram
em orvalhada luz de amanhecer.

Ó bendito passado que era atroz,
e gozoso hoje terno se apresenta
e faz vibrar de novo minha voz

para exaltar o redivivo amor
que de memória-imagem se alimenta
e em doçura converte o próprio horror!"


Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

ÚLTIMO SONETO

Que rosas fugitivas foste ali!
Requeriam-te os tapetes, e vieste...
- Se me dói hoje o bem que me fizeste,
É justo, porque muito te devi.

Em que seda de afagos me envolvi
Quando entraste, nas tardes que apareceste!
Como fui de percal quando me deste
Tua boca a beijar, que remordi...

Pensei que fosse o meu o teu cansaço -
Que seria entre nós um longo abraço
O tédio que, tão esbelta, te curvava...

E fugiste... Que importa? Se deixaste
A lembrança violeta que animaste,
Onde a minha saudade a Cor se trava?

(Màrio de Sá-Carneiro) - Poesias
Edições Ática

SILÊNCIO

Senta-te aqui a meu lado
e não digas nada
chega que olhes
e sintas
o silêncio das palavras
que tenho para ti

Não digas nada
escuta o meu olhar
e sente
palavras pensamento
e o resto
é só amar

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

A UNA DAMA MUY BLANCA, VESTIDA DE VERDE

Cisne gentil, después que crespo el vado
dejó, y de espuma la agua encanecida,
que al rubio sol la pluma humedecida
sacude, de las juncias abrigado;

copos de blanca nieve en verde prado;
azucena entre murtas escondida;
cuajada leche en juncos exprimida;
diamante entre esmeraldas engastado,

no tienen que preciarse de blancura
después que nos mostró su airoso brío
la blanca Leda en verde vestidura.

Fue tal, que templó su aire el fuego mío,
y dio, con su vestido y su hermosura,
verdor al campo, claridad al río.

(Luis de Gongora) - Sonetos Completos
Clásicos Castalia

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

SE EU FOSSE...

Se eu fosse um Príncipe encantado
Teria uma varinha mágica
E faria de palavras
Música para te encantar
Quando eu for um Príncipe encantado
Hei-de ter a varinha mágica dos Poetas
Loucos
Que amam só a sentir que
Uma mulher de sonho
Há-de vir
E nunca veio

Eu sou o Príncipe encantado
Que tem uma varinha mágica
Pensada para ti
Eu sou o Príncipe encantado
Que vive dentro de ti

Raferial

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

POEMA DOS BEIJOS

... Vivamos para amar,
E deixemos de parte as sombras da velhice.
O sol desaparece e pode voltar
E nós dormiremos sempre a noite inteira
Quando a luz breve declinar!
Oh! Beija-me mil vezes - mil vezes mais!
Beija-me outras mil vezes - mil vezes mais!
Beija-me ainda mil vezes - mil vezes mais!
Depois - excedido o número de milhar,
Misturemos os beijos de tal forma
Que os não sejamos capazes de contar,
Nem algum invejoso destes beijos
Os possa cobiçar!

(Catulo) - Catulo
Coimbra Editora Lda.

LITANIA + DESPERTAR

LITANIA

O teu rosto inclinado pelo vento;
a feroz brancura dos teus dentes;
as mãos de certo modo irresponsáveis,
e contudo sombrias, e contudo transparentes;

o triunfo cruel das tuas pernas,
colunas em repouso se anoitece;
o peito raso, claro, feito de água;
a boca sossegada onde apetece

navegar ou cantar, ou simplesmente ser
a cor dum fruto, o peso duma flor;
as palavras mordendo a solidão,
atravessadas de alegria e de terror;

são a grande razão, a única razão.


DESPERTAR

É um pássaro, é uma rosa,
é o mar que me acorda?
Pássaro ou rosa ou mar,
tudo é ardor, tudo é amor.
Acordar é ser rosa na rosa,
canto na ave, água no mar.


(Eugénio de Andrade) - O Sal da Língua precedido de Trinta Poemas

domingo, 26 de outubro de 2008

O MERGULHADOR

E il naufragar m'è dolce in questo mare
Leopardi

Como, DENTRO DO MAR, libérrimos, os polvos
No líquido luar tateiam a coisa a vir
Ãssim dentro do ar, meus lentos dedos loucos
Passeiam no teu corpo a te buscar-te a ti.

És a princípio doce plasma submarino
Flutuando ao sabor de súbitas correntes
Frias e quentes, substância estranha e íntima
De teor irreal e tato transparente.

Depois teu seio é a infância, duna mansa
Cheia de alísios, marco espectral do istmo
Onde, a nudez vestida só de lua branca
Eu ia mergulhar minha face já triste.

Nele soterro a mão como a cravei criança
Noutro seio de que me lembro, também pleno...
Mas não sei... o ímpeto deste é doido e espanta
O outro me dava vida, este me mete medo.

Toco uma a uma as doces glândulas em feixes
Com a sensação que tinha ao mergulhador os dedos
Na massa cintilante e convulsa de peixes
Retiradas ao mar nas grandes redes pensas.

Ponho-me a cismar... - mulher, como expandes!
Que imensa és tu! maior que o mar, maior que a infância!
De coordenadas tais e horizontes tão grandes
Que assim imersa em amor és uma Atlântida!

Vem-me a vontade de matar em ti toda a poesia
Tenho-te em garra; olhas-me apenas; e ouço
No tato acelerar-se-me o sangue, na arritmia
Que faz meu corpo vil querer teu coprpo moço.

E te amo, e te amo, e te amo, e te amo
Como o bicho feroz ama, a morder, a fêmea
Como o mar ao penhasco onde se atira insano
E onde a bramir se aplaca e a que retorna sempre.

Tenho-te e dou-me a ti válido e indissolúvel
Buscando a cada vez, entre tudo o que enerva
O imo do teu ser, o vórtice absoluto
Onde possa colher a grande flor da treva.

Amo-te a longos pés, ainda infantis e lentos
Na tua criação; amo-te as hastes tenras
Que sobem em suaves espirais adolescentes
E infinitas, de toque eaxacto e frémito.

Amo-te os braços juvenis que abraçam
Confiantes meu criminoso desvario
E as desveladas mãos, as mãos multiplicantes
Que em cardume acompanham o meu nadar sombrio.

Amo-te o colo pleno, onda de pluma e âmbar
Onda lenta e sozinha onde se exaure o mar
E onde é bom mergulhar até romper-me o sangue
e me afogar de amor e chorar e chorar.

Amo-te os grandes olhos sobre-humanos
Nos quais, mergulhador, sondo a escura voragem
Na ânsia de descobrir, nos mais fundos arcanos
Sob o oceano, oceanos; e além, a minha imagem.

Por isso - isso e ainda mais que a poesia não ousa
Quando depois de muito mar, de muito amor
Emergindo de ti, ah, que silêncio pousa
Ah, que tristeza cai sobre o mergulhador!

Vinicius de Moraes - Poesia Completa & Prosa

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

VILANCETE DO CONDE DE VIMIOSO

Meu bem, sem vos ver,
Se vivo um dia,
Viver não queria.

Calando e sofrendo
Meu mal sem medida,
Mil mortes na vida
Sinto, não vos vendo.
E pois que, vivendo,
Morro todavia,
Viver não queria.

(Conde de Vimioso)

domingo, 19 de outubro de 2008

LES AMOUREUX TRAHIS

Moi, j'avais une lampe
et toi la lumière
Qui a vendu la mèche?

Jacques Prévert - La Pluie et le Beau Temps

sábado, 18 de outubro de 2008

"CONHEÇO O SAL..."

Conheço o sal da tua pele seca
depois que o estio se volveu inverno
da carne repousando em suor nocturno.

Conheço o sal do leite que bebemos
quando das bocas se estreitavam lábios
e o coração no sexo palpitava.

Conheço o sal dos teus cabelos negros
ou louros ou cinzentos que se enrolam
neste dormir de brilhos azulados.

Conheço o sal que resta em minhas mãos
como nas praias o perfume fica
quando a maré desceu e se retrai.

Conheço o sal da tua boca, o sal
da tua língua, o sal de teus mamilos,
e o da cintura se encurvando de ancas.

A todo o sal conheço que é só teu,
ou de mim em ti, ou é de ti em mim,
um cristalino pó de amantes enlaçados.

Jorge de Sena - Poesia - III

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

VIOLETA

Apertar-lhe, senhora, as mãos pequenas
Nunca foi logrado esse desejo;
Por bem pago me dou das minhas penas,
Se um dia a vejo!
Vê-la somente! amor desavisado!
Que já nem sei agora que mais peça;
Nem sei de extremos, ou maior agrado,
Que lhe mereça.
Quisesse a minha próspera ventura
Descobrir-lhe esta dor, que me devora;
Teria dó da minha vida escura,
Gentil senhora.
Que para mim a aurora nunca aponta,
Nem eu vejo do Sol os resplendores;
Os males meus, senhora, não têm conta,
Nem minhas dores.
Mas quando a furto a vejo, que alegria!
Mas quando a voz lhe escuto, desfaleço!
E deste padecer, que me excrucia,
Até me esqueço.
Eu não lhe imploro amor: virá somente
Entreabrir-se-me o céu formosa dama,
Se lhe ouvisse dizer com voz tremente:
«Como ele me ama!»
(Gonçalves Crespo) - Miniaturas

QUASE

Um pouco mais de sol - eu era brasa.
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
- Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... -
Eu falhei-me entre os mais, falhei-me em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

...........................................................
..........................................................

Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

(Mário de Sá Carneiro) - Poesias

terça-feira, 14 de outubro de 2008

SONETO 97 (30-35)

Um mover de olhos, brando e piedoso,
Sem ver de quê; um riso brando e honesto,
Quase forçado; um doce e humilde gesto,
De qualquer alegria duvidoso;

Um despejo quieto e vergonhoso;
Um repouso gravíssimo e modesto;
Uma pura bondade manifesto
Indício da alma, limpo e gracioso;

Um encolhido ousar; uma brandura;
Um medo sem ter culpa; um ar sereno;
Um longo e obediente sofrimento:

Esta foi a celeste fermosura
Da minha Circe, e o mágico veneno
Que pôde transformar meu pensamento.

(Camões) - Obra Completa

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

POVOAMENTO

Não caibo nesta tarde que me desfolhas
sobre o coração. Renovam-se-me sob os passos
todos os caminhos e o dia é uma página que lida
e soletrada descubro inatingível como o vento a rua e a vida
As mesmas mãos que antes desfraldavam
domésticas insígnias abaixo dos beirais
emprestam novos pássaros às árvores
Pétala a pétala chego à corola desta minha hora
Roubo o meu ser a qualquer outro tempo
não há em mim memória de alguma morte
em nenhum outro lugar me edifiquei
Arredondas à minha volta os lábios para me dizer
recuo de repente àquele princípio que em tua boca tive
Eu sei que só tu sabes o meu nome
tentar sabê-lo foi afinal o único
esforço importante da minha vida
Sinto-me olhado e não tenho mais ser
que ser visto por ti. Há no meu ombro lugar
para o teu cansaço e a minha altura é para ser medida
palmo a palmo pela tua mão ferida

(Ruy Belo) - Todos os Poemas
(Assírio 6 Alvim - 2000)

domingo, 12 de outubro de 2008

AS MINHAS ASAS

Eu tinha umas asas brancas,
asas que um anjo me deu,
que, em me cansando da terra,
batia-as, voava ao céu.
- Eram brancas, brancas, brancas,
como as do anjo que mas deu.
Eu, inocente como elas,
por isso voava ao céu.

Veio a cobiça da terra,
vinha para me tentar;
por seus montes de tesouros
minhas asas não quis dar.
- Veio a ambição coas grandezas,
vinham para mas cortar,
davam-me poder e glória;
por nenhum preço as quis dar.

Porque as minhas asas brancas,
asas que um anjo me deu,
em me eu cansando da terra,
batia-as, voava ao céu.

Mas uma noite dem lua
que eu contemplava as estrelas,
e já suspenso da terra
ia voar para elas,
- deixei descair os olhos
do céu alto e das estrelas...
Vi, entre a névoa da terra,
outra luz mais bela que elas.

E as minhas asas brancas,
asas que um anjo me deu,
para a terra me pesavam,~
já não se erguiam ao céu.

Cegou-me essa luz funesta
de enfeitiçados amores...
Fatal amor, negra hora
foi aquela hora de dores!
- Tudo perdi nessa hora
que provei nos seus amores,
o doce fel do deleite,
o acre prazer das dores.

E as minhas asas brancas,
asas que um anjo me deu,
pena a pena me cairam...
Nunca mais voei ao céu.

(Almeida Garrett) - Flores sem Fruto

AMOR EM FORMA DE POEMA

Amor
Sentimento ou paixão
Afecto
Inclinação
Desejo de encantar
Que vem de amar
O ser
Objecto da nossa afeição
Digno de ser amado
Amor perfeito
Amorável
Encantador
Sentimento maciinho
Amoroso
Captativo, oblativo
Conjugal ou possessivo
Fofinho
É sempre assim
Maravilhoso

TAMBÉM ESTE CREPÚSCULO

Também este crepúsculo nós perdemos.
Ninguém nos viu hoje à tarde de mãos dadas
enquanto a noite azul caía sobre o mundo.

Olhei da minha janela
a festa do poente nas encostas ao longe.

Às vezes como uma moeda
acendia-se um pedaço de sol nas minhas mãos.

Eu recordava-te com a alma apertada
por essa tristeza que tu me conheces.

Onde estavas então?
Entre que gente?
Dizendo que palavras?
Por que vem até mim todo o amor de repente
quando me sinto triste, e te sinto tão longe?

Caiu o livro em que sempre pegámos ao crepúsculo
e como cão ferido rodou minha capa aos pés.

Sempre, sempre te afastas pela tarde
para onde o crepúsculo corre apagando estátuas.

(Pablo Neruda) Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada
(Trad. Fernando Assis Pacheco)

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

REFLEXÕES 2

nunca escrevi um poema de amor
excepto hoje
que te beijei
nunca escrevi uma canção de amor
excepto hoje
que senti teu coração
nunca escrevi música de amor
excepto hoje
que suguei teu seio
nunca escrevi Amor
escepto hoje
que te amei

terça-feira, 30 de setembro de 2008

REVOLTA DA CULPA

Sinto em mim a contradição do tempo
Misturada com a tristeza do teu olhar
Parto à conquista das estrelas
Para esquecer
O que dentro de mim
Te faz amar
Jogo ao infinito
O meu coração
De pedra
Teu nome
morde-me os lábios
de beijos sensuais
Sinto-me pedra
Ao olhar-me nos teus olhos
Quero sentir-te eu
Do eu que sou ao
Que não quis ser
Mas sou
Fujo de mim
Sinto raízes crescer
dentro do meu ser
E enquanto sou o que não sou
Tu foges-me
Quero abrir com machados as fronteiras
Do tempo e do espaço
Quebrar barreiras
E partir no teu braço
Feito nuvem de fumo
Ou miragem do deserto
Estou louco
Eu parti numa viagem circular
À procura do regresso
do teu olhar
As nuvens voavam alto
Mais longe esmeraldas de prata
Acenavam-me!
Sinto a traição dos meus beijos
A loucura do meu ser.
E a ironia do mar
reflectia olhos de cristal...

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

SONETO DE VÉSPERA

Quando chegares e eu te vir chorando
De tanto te esperar, que te direi?
E da angústia de amar-te, te esperando
Reencontrada, como te amarei?

Que beijo teu de lágrima terei
Para esquecer o que vivi lembrando
E que farei da antiga mágoa quando
Não puder te dizer porque chorei?

Como ocultar a sombra em mim suspensa
Pelo martírio da memória imensa
Que a distância criou - fria de vida

Imagem tua que eu compus serena
Atenta ao meu apelo e à minha pena
E que quisera nunca mais perdida...

Vinicius de Moraes - Obras Completas

SONETO DO AMOR TOTAL

Amo-te tanto, meu amor...não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te afim, de um calmo amor prestante,
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente,
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim muito amiúde,
É que um dia em teu corpo de repente
Hei-de morrer de amar mais do que pude.

Vinicius de Moraes - Obras Completas

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Alma Perdida

Toda esta noite o rouxinol chorou,
Gemeu, rezou, gritou perdidamente!
Alma de rouxinol, alma de gente,
Tu és, talvez, alguém que se finou!

Tu és, talvez, um sonho que passou,
Que se fundiu na Dor, suavemente...
Talvez sejas a alma, a alma doente
Dalguém que quis amar e nunca amou!

Toda a noite choraste... e eu chorei
Talvez porque, ao ouvir-te, adivinhei
Que ninguém é mais triste do que nós!

Contaste tanta coisa à noite calma,
Que eu pensei que tu eras a minh'alma
Que chorasse perdida em tua voz!...

Sonetos - Florbela Espanca