terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Dia 46


São as pessoas como tu que fazem com que o nada queira dizer-nos algo, as coisas vulgares se tornem coisas importantes e as preocupações maiores sejam de facto mais pequenas.

São as pessoas como tu que dão outra dimensão aos dias, transformando a chuva em delirante orvalho e fazendo do inverno uma estação de rosas rubras.

As pessoas como tu possuem não uma, mas todas as vidas.

Pessoas que amam e se entregam porque amar é também partilhar as mãos e o corpo.

Pessoas que nos escutam e nos beijam e sabem transformar o cansaço numa esperança aliciante, tocando-nos o rosto com dedos de água pura, soltando-nos os cabelos com a leveza do pássaro ou a firmeza da flecha.

São as pessoas como tu que nos respiram e nos fazem ins-pirar com elas o azul que há no dorso das manhãs, e nos estendem os braços e nos apertam até sentirmos o coração transformar o peito numa música infinita.

São as pessoas como tu que nunca nos pedem nada mas têm sempre tudo para dar, e que fazem de nós nem ícaros nem prisioneiros, mas homens e mulheres com a estatura da vida, capazes da beleza e da justiça, do sofrimento e do amor.

São as pessoas como tu que, interrogando-nos, se interrogam, e encontram respostas para todas as perguntas nos nossos olhos e no nosso coração.

As pessoas que por toda a parte deixam uma flor para que ela possa levar beleza e ternura a outras mãos.

Essas pessoas que estão sempre ao nosso lado para nos ensinar em todos os momentos, ou em qualquer momento, a não sentir o medo, a reparar num gesto, a escutar um violino.

São as pessoas como tu que ajudam a transformar o mundo.


JOAQUIM PESSOA, in ANO COMUM (Litexa, 2011)

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

UMA CARTA AO CAIR DA TARDE

Meu amor,

O oceano não precisa das suas lágrimas para ficar mais salgado.

Nem os céus nem as estrelas ficarão mais luminosos

do que o brilho dos teus olhos.

Mas a minha vida ficará mais deserta

sem o aconchego dos teus abraços

e o suspiro melancólico da tua voz em meus ouvidos.

Portanto, não se esqueça de que

o oceano sempre toca o céu no infinito das paixões,

assim como eu infinitamente enlaço o corpo da tua alma

despudoradamente através do erotismo que brota ávido

no corpo das minhas palavras.

CARLOS EDUARDO LEAL, 
in A SEDE DA MULHER (E DE UM HOMEM), 
(editado no Brasil, s/ data)

sábado, 20 de outubro de 2012

Não Posso Adiar O Amor Para Outro Século

Não posso adiar o amor para outro século 

não posso

ainda que o grito sufoque na garganta

ainda que o ódio estale e crepite e arda

sob as montanhas cinzentas

e montanhas cinzentas



Não posso adiar este abraço

que é uma arma de dois gumes amor e ódio

Não posso adiar

ainda que a noite pese séculos sobre as costas

e a aurora indecisa demore

não posso adiar para outro século a minha vida

nem o meu amor

nem o meu grito de libertação



Não posso adiar o coração.


ANTÓNIO RAMOS ROSA

in VIAGEM ATRAVÉS DUMA NEBULOSA (1960) 

e ANTOLOGIA POÉTICA 

 (Publ. D. Quixote, 2001)

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Gostava de morar na tua pele...



Gostava de morar na tua pele
desintegrar-me em ti e reintegrar-me
não este exílio escrito no papel
por não poder ser carne em tua carne.

Gostava de fazer o que tu queres
ser alma em tua alma em um só corpo
não o perto e o distante entre dois seres
não este haver sempre um e sempre o outro.

Um corpo noutro corpo e ao fim nenhum
tu és eu e eu sou tu e ambos ninguém
seremos sempre dois sendo só um.

Por isso esta ferida que faz bem
este prazer que dói como outro algum
e este estar-se tão dentro e sempre aquém.

Manuel Alegre in "Sete Sonetos e Um Quarto"

Canção Mínima


No mistério do sem-fim

equilibra-se um planeta.



E, no planeta, um jardim,

e, no jardim, um canteiro;

no canteiro uma violeta,


e, sobre ela, o dia inteiro,

entre o planeta e o sem-fim,

a asa de uma borboleta.


Cecília Meireles

terça-feira, 25 de setembro de 2012

MORRER DE AMOR

Morrer de amor
ao pé da tua boca


Desfalecer
à pele
do sorriso


Sufocar
de prazer
com o teu corpo


Trocar tudo por ti
se for preciso.


MARIA TERESA HORTA, in POESIA COMPLETA (Litexa, 1983)

terça-feira, 28 de agosto de 2012

APELO


Atravessa os campos da noite
e vem.

A minha pele
ainda cálida de sol
te será margem.

Nas fontes, vivas,
do meu corpo
saciarás a tua sede.

Os ramos dos meus braços
serão sombra romorejante
ao teu sono, exausto.

Atravessa os campos do sono
e vem.



LUÍSA DACOSTA, in "A MARESIA E O SARGAÇO DOS DIAS" (Asa, 2011)

COM O HORIZONTE PERTO DO INFINITO

Com o coração
ao pôr-do-sol
voo sem asas na quietude do mar
no caminho onde me entendes
mergulhos invisíveis
daquilo que não digo...

Embalo ao relento
uma nova emoção
entre as duas mãos
no colo da tua alma
a reinventar o espírito
perdido das fontes divinas...

Levito ao som das águas
no perfume das açucenas
que se fixaram ao corpo
na silhueta da vida em prumos...

Tal falésia rasgada pelo vento
imponente e firme
sangram das rochas o sal
e do olhar os sorrisos
de uma vista longa
com o horizonte perto do infinito
que toco com o crer de uma razão
no chão que piso com o coração!

ANA COELHO (a publicar)


domingo, 19 de agosto de 2012

Beijemo-nos, apenas...


Não. Beijemo-nos, apenas,
Nesta agonia da tarde.

Guarda
Para um momento melhor
Teu viril corpo trigueiro.

O meu desejo não arde;
E a convivência contigo
Modificou-me - sou outro...

A névoa da noite cai.

Já mal distingo a cor fulva
Dos teus cabelos - És lindo!

A morte,
devia ser
Uma vaga fantasia!

Dá-me o teu braço: - não ponhas
Esse desmaio na voz.

Sim, beijemo-nos apenas,
Que mais precisamos nós?


Catulo, Carmina, Tradução de António Botto.

Fonte: http://cseabra.utopia.com.br/poesia/poesias/0135.html

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Poema de Amor

Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.
E é o que eu sei fazer com mais delicadeza!

A nossa natureza
Lusitana
Tem essa humana
Graça
Feiticeira
De tornar de cristal
A mais sentimental
E baça
Bebedeira.

Mas ou seja que vou envelhecendo
E ninguém me deseje apaixonado,
Ou que a antiga paixão
Me mantenha calado
O coração
Num íntimo pudor,
— Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.

Miguel Torga, in 'Diário V'

domingo, 12 de agosto de 2012

O Espírito

Nada a fazer amor, eu sou do bando

Impermanente das aves friorentas;

E nos galhos dos anos desbotando

Já as folhas me ofuscam macilentas;


E vou com as andorinhas. Até quando?

À vida breve não perguntes: cruentas

Rugas me humilham. Não mais em estilo brando

Ave estroina serei em mãos sedentas.


Pensa-me eterna que o eterno gera

Quem na amada o conjura. Além, mais alto,

Em ileso beiral, aí espera:


Andorinha indemne ao sobressalto

Do tempo, núncia de perene primavera.

Confia. Eu sou romântica. Não falto.



Natália Correia, in "Poesia Completa"


O Espírito

Nada a fazer amor, eu sou do bando

Impermanente das aves friorentas;

E nos galhos dos anos desbotando

Já as folhas me ofuscam macilentas;


E vou com as andorinhas. Até quando?

À vida breve não perguntes: cruentas

Rugas me humilham. Não mais em estilo brando

Ave estroina serei em mãos sedentas.

Pensa-me eterna que o eterno gera

Quem na amada o conjura. Além, mais alto,

Em ileso beiral, aí espera:


Andorinha indemne ao sobressalto

Do tempo, núncia de perene primavera.

Confia. Eu sou romântica. Não falto.



Natália Correia, in "Poesia Completa"

domingo, 1 de julho de 2012

VELHO MOTIVO

Soneto de Jacob, pastor antigo
- soneto de Raquel, serrana bela...
Oh! quantas vezes o relembro e digo,
Pensando em ti, como se foras Ela!
 
O que eu servira para viver contigo,
- tão doce, tão airosa e tão singela!
Assim distante do teu rosto amigo,
em torturar-me a ausência se desvela!
 
E vou sofrendo a minha pena amarga,
- pena que não me deixa nem me larga,
bem mais cruel que a de Jacob pastor!
 
Raquel não era dele, mas sempre a via,
Enquanto eu não vejo, noite e dia,
aquela que me tem por seu senhor!


(António Sardinha)

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Amor

"o teu rosto à minha espera, o teu rosto
a sorrir para os meus olhos, existe um
trovão de céu sobre a montanha.

as tuas mãos são finas e claras, vês-me
sorrir, brisas incendeiam o mundo,
respiro a luz sobre as folhas da olaia.

entro nos corredores de outubro para
encontrar um abraço nos teus olhos,
este dia será sempre hoje na memória.

hoje compreendo os rios. a idade das
rochas diz-me palavras profundas,
hoje tenho o teu rosto dentro de mim."

José Luís Peixoto, in "A Casa, A Escuridão"

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Nos teus braços

ETERNO



"Um sentimento verdadeiro não morre.
Por decepcionado que fique, por machucado que seja
pode até esfriar ou adormecer,
mas tal como o vento, jamais deixa de soprar:


Um amor de verdade retém em si
a própria essência do tempo e do universo
É imortal, é infinito
É eterno..."

- Augusto Branco -

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Sozinha no bosque...

1

Sozinha no bosque
com meus pensamentos,
calei as saudades,
fiz trégua aos tormentos.

Olhei para a Lua.
que as sombras rasgava,
nas trémulas águas
seus raios soltava.

Naquela torrente
que vai despedida.
encontro assustada
a imagem da vida.

Do peito, em que as dores
já iam cessar,
revoa a tristeza,
e torno a pensar.

2

Como está sereno o céu,
como sobe mansamente
a Lua resplandecente
e esclarece este jardim!

Os ventos adormeceram;
das frescas águas do rio
interrompe o murmurio
de longe o som de um clarim.

Acordam minhas ideias,
que abrangem a Natureza;
e esta nocturna beleza
vem meu estro incendiar.

Mas, se à lira lanço a mão,
apagadas esperanças
me apontam cruéis lembranças,
e choro em vez de cantar.

3

Eu cantarei um dia de tristeza
por uns termos tão ternos e saudosos,
que deixem aos alegres invejosos
de chorarem o mal que lhes não pesa.

Abrandarei das penhas a dureza,
exalando suspiros tão queixosos,
que jamais os rochedos cavernosos
os repitam da mesma natureza.

Serras, penhascos, troncos, arvoredos,
ave, fonte, montanha, flor, corrente,
comigo hão-de chorar de amor enredos.

Mas ah! que adoro uma alma que não sente!
Guarda, Amor, os teus pérfidos segredos,
que eu derramo os meus ais inutilmente.

(Marquesa de Alorna - 1750-1839)