domingo, 14 de março de 2010

S.O.S.



Meus sentidos votaram a lei da procura
E os augúrios colhidos nas minhas entranhas
Prometeram as lutas que vencem a morte.
E foi por isso, mulher,
E foi por isso que antes de eu nascer
Se escreveu no meu sangue
A mensagem que havias de ler.

Mas onde moras?
Tu, que guardas em teu ventre
Um lugar para o meu filho!...
Onde choras,
Se a multidão te pisa, longe dos meus braços...
Onde cantas
Se pressentes
A cadência dos meus passos?...

Vai-se-me tudo em morte, a procurar-te
Nesse golfo revolto que nos engoliu,
Mas eu quero inventar outra vida,
E tenho os planos:
O labor é teu.

Onde moras,
Onde cantas e choras,
Tu de quem me falaram antes de eu nascer?...
E de quem falarei, para além,
Quando eu morrer!

Escuta agora uma garganta enxuta,
Gritando no meu corpo
Esbracejante,
Presa e rebelde
No abraço do mar.
Escuta agora uma garganta rouca
Enquanto a água é pouca para me afogar.
Escuta e não juntes a cinza das velas
Do barco do tempo
Que nos ardeu
- Traz o beijo que resolve
E dissolve as entranhas
Ainda que não sejas tu que venhas.

Políbio Gomes dos Santos (Ansião, 1911-1939) in Poemas
Campo das Letras

GÉNESIS

O mundo existe desde que eu fui nado.
Tudo o mais é um... era uma vez
- A história que se contou.

No princípio criou-se o leite que mamei
E eu vi que era bom e chorei
Quando a fonte materna secou.

A terra era sem forma
E vazia;
Havia trevas no abismo.

E formou-se o chão
E amassou-se o pão
Que eu comi.
(Era este aquela esponja que eu mordia,
Que eu babava,
Que eu sujava,
Que uma gente andrajosa pedia).

E então se fez
A geração remota dos papões:
Nascera a esmola, o medo, a prece
E o rosto que empalidece...
E a rosa criou-se,
Desejada,
E logo o espinho,
A lágrima,
O sangue.
Este era vermelho e doce,
A lágrima doce, briolhante, salgada;
No espinho havia o gosto
Da vingança perfumada.

E eu vi que tudo era bom.

E fizeram-se os luminares,
Porque eu tinha olhos,
E o som fez-se de cantares
E de gemidos.
Porque eu tinha ouvidos.
Nasceram as águas
E os peixes das águas
E alguns seres viventes da terra
E as aves dos céus.
O homem que então era vagamente feito,
Dominou o homem, comprimiu-lhe o peito,
E fizeram-se as mágoas
E o adeus.

E eu vi que tudo era bom.

A mulher só mais tarde se fez:
Foi duma vez
Em que eu e ela nos somámos
E ficámos três.

Nisto e no mais se gastaram
sete longuíssimos dias.

O mundo era feito
E embora por tudo e por nada imperfeito,
Eu vi que era bom.

Acaba o mundo
Quando eu morrer.
Sim...será o fim!:
Também tu deixas de existir,
No mesmo dia.

E o resto que se seguir
É profecia.

Políbio Gomes dos
Santos (Ansião, 1911-1939) - in Poemas - Campo das Letras

terça-feira, 9 de março de 2010

Poesia

"é a visita do tempo nos teus olhos,
é o beijo do mundo nas palavras
por onde passa o rio do teu nome;
é a secreta distância em que tocas
o princípio leve dos meus versos;
é o amor debruçado no silêncio
que te cerca e que te esconde:
como num bosque, lento, ouvimos
o coração de uma fonte não sei onde..."



Vítor Matos e Sá
in 'Esparsos'

domingo, 7 de março de 2010

Amo o Caminho que Estendes



Amo o caminho que estendes por dentro das minhas divisões.
Ignoro se um pássaro morto continua o seu voo
Se se recorda dos movimentos migratórios
E das estações.
Mas não me importo de adoecer no teu colo
De dormir ao relento entre as tuas mãos.

Daniel Faria in Líquidos

GOZO E DOR

Se estou contente, querida,
Com esta imensa ternura
De que me enche o teu amor?
Não. Ai não; falta-me a vida;
Sucumbe-me a alma à ventura:
O excesso de gozo é dor.

Dói-me a alma, sim; e a tristeza
Vaga, inerte e sem motivo,
No coração me poisou.
Absorto em tua beleza,
Não sei se morro ou se vivo,
Porque a vida me parou.

É que não há ser bastante
Para este gozar sem fim
Que me inunda o coração.
Tremo dele, e delirante
Sinto que se exaure em mim
Ou a vida - ou a razão.

Almeida Garrett in Folhas Caídas

terça-feira, 2 de março de 2010

Horas Rubras

"Horas profundas, lentas e caladas,
Feitas de beijos sensuais e ardentes,
De noites de volúpia, noites quentes
Onde há risos de virgens desmaiadas.

Ouço as olaias rindo desgrenhadas...
Também astros em fogo, astros dementes,
E do luar os beijos languscentes
São pedaços de prata pelas estradas...

Os meus lábios são brancos como lagos...
Os meus braços são leves como afagos,
Vestiu-os o luar de sedas puras...

Sou chama e neve branca e mistérios...
E, sou, talvez, na noite voluptuosa,
Ó meu Poeta, o beijo que procuras!"


Florbela Espanca (1894-1930)