domingo, 31 de janeiro de 2010

Consolação

Quando à noite no baile esplendoroso
Vais na onda da valsa arrebatada
Com a serena fronte reclinada
Sobre o peito feliz do par ditoso...

Mal sabes tu que existe desditoso
Faminto de te ver, oh minha amada!
E que sente a sua alma angustiada
Longe da luz do teu olhar piedoso.

Mas quando a roxa aurora vem nascendo,
E a cotovia acorda o laranjal,
E os astros vão de todo esmorecendo,

Eu cuido ver-te, oh lírio divinal,
As minhas cartas ávida relendo
Seminua no leito virginal.

Gonçalves Crespo, 1869

Eu pronuncio teu nome...

Eu pronuncio teu nome
nas noites escuras,
quando vêm os astros
beber na lua
e dormem nas ramagens
das frondes ocultas.
E eu me sinto oco
de paixão e de música
Louco relógio que canta
mortas horas antigas.

Eu pronuncio teu nome,
nesta noite escura,
e teu nome me soa
mais distante que todas as estrelas
e mais dolente que a mansa chuva.

Amar-te-ei como então
Alguma vez? Que culpa
tem meu coração?
Se a névoa se esfuma,
que outra paixão me espera?
Será tranquila e pura?
Se meus dedos dudessem


Garcia Lorca

Colóquio dos amantes à porta do templo

- Começa, não esperes por mim, atravessa a porta para além do fim,
recolhe o odor da flor no canto do jardim, começa como quem regressa
de dentro de mim quando a vida acelera, não esperes enquanto esperas,
recomeça do zero teu discurso austero em que aos poucos desespero.

- Começa, reza por mim esta sílaba errática numa língua sem gramática,
soletra cada palavra como quem grava uma oitava nas águas com que se lava,
decifra todas as letras que o vento expira nas gretas da solidão, respira sem mim
enquanto me trazes dentro do pulmão, começa a caminhar na pura imaterialidade
como quem atravessa o fim no princípio mais distante de qualquer cidade.

- Começa, não esperes enquanto esperas, começa e recomeça depois de recomeçares,
safah, toma esta palavra em forma de porta iluminada, língua ardendo nos lábios,
davar, toma esta palavra em forma de torre insuflada, língua mordendo os lábios,
graça infinita de ser ave, garça branca que comove a sarça ardente quando chove.

- Começa, não esperes por ti, começa e atravessa a porta para além de mim,
respira-me no perfume do jardim mas leva-me no teu lume para além do fim,
não esperes senão o que te espera, e no entanto espera do sal da terra
o verão incorruptível da primavera e a paixão do tempo imóvel que acelera,
habita para além de ti o infinito e reza no canto infeliz a sílaba do teu grito.

- Começa, espera por mim, começa de súbito o meu recomeço antes de ser hábito,
começa e reinventa esta palavra como se fosse lava da sarça ardendo em cada lábio,
começa e soletra cada letra, letra a letra, e no fim desperta como quem se oferta,
para que tudo em nós recomece e cante e reze a nossa primeira prece.

- Começa, espera ou não por mim em ti, mas começa em ti dentro de mim.

Luís Adriano Carlos

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

O meu amor não cabe num poema...


O meu amor não cabe num poema - há coisas assim,
que não se rendem à geometria deste mundo;
são como corpos desencontrados da sua arquitectura
os quartos que os gestos não preenchem.

O meu amor é maior que as palavras; e daí inútil
a agitação dos dedos na intimidade do texto -
a página não ilustra o zelo do farol que agasalha as baías
nem a candura da mão que protege a chama que estremece.

O meu amor não se deixa dizer - é um formigueiro
que acode aos lábios com a urgência de um beijo
ou a matéria efervescente os segredos; a combustão
laboriosa que evoca, à flor da pele, vestígios
de uma explosão exemplar: a cratera que um corpo,
ao levantar-se, deixa para sempre na vizinhança de outro corpo.

O meu amor anda por dentro do silêncio a formular loucuras
com a nudez do teu nome - é um fantasma que estrebucha
no dédalo das veias e sangra quando o encerram em metáforas.
Um verso que o vestisse definharia sob roupa
como esqueleto de uma palavra morta, nenhum poema
podia ser o chão a sua casa.

Maria do Rosário Pedreira

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Mon Père

Que la maison me parait vide
Sans son désordre et sans sa voix
Ça me semble encore impossible
Pourtant il y a deux ans déjà

Ma mère a rangé tous ses livres
Et ses outils de jardinier
Tous ces objets qu'il faisait vivre
Qui eux aussi vont s'ennuyer

Il ne parlait pas de la guerre
Pourtant mon héros c'était lui
J'étais si fière qu'il soit mon père
Fière de m'appeler comme lui

Ses colères étaient des tempêtes
Lorsque j'avais désobéi
Et puis il pleurait en cachette
Parce que j'avais un premier prix

C'était plus que de la tendresse
Qu'il avait pour tous nos rosiers
Il peignait avec maladresse
C'était toujours moi qui posais

Je sais bien que je lui ressemble
Je suis têtue comme il était
J'ai ses yeux et ses côtes tendres
Et j'aime tout ce qu'il aimait

C'était mon ami et mon frère
Et tous mes souvenirs d'enfant
C'était mon ami et mon père
Et il me manque bien souvent

Canção de Sylvie Vartan, Mon Père

Se tu viesses ver-me...


"Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti..."



Florbela Espanca

domingo, 24 de janeiro de 2010

A TI

Quiero cantar con la voz del Alma
el himno del amor eterno,
quiero abrazar con mi cuerpo de luna
el templo de oro de tu alma tranquilla.

Quiero sentir tu presencia huidiza,
sumergiéndome en la Luz de tus caminos,
volar con el ritmo del viento
hacia las alturas del amor,
y entregarme a ti para siempre
en el éxtasis de nuestra unión secreta.

Quiero elevarme contigo
más allá de las cumbres terrenales
hasta el reino de la paz y de la armonia,
donde nuestra dicha no puede ser perturbada jamás,
unidos por siempre en Amor inmortal.

Renato Alejandro Huerta

Foram pétalas...?

Foram pétalas
Ou olhos de deusas
que calquei?

Não,
Não mo digam

Eu sei que foram sonhos

Daniel Faria

A noite na ilha

Dormi contigo a noite inteira junto no mar, na ilha.
Selvagem e doce eras entre o prazer e o sono,
entre o fogo e a água
Talvez bem tarde nossos
sonos se uniram na altura e no fundo,
em cima como ramos que um mesmo vento move,
em baixo como raízes vermelhas que se tocam.
Talvez teu sono se separou do meu e pelo mar escuro
me procurava como antes, quando nem existias,
quando sem te enxergar naveguei a teu lado
e teus olhos buscavam o que agora - pão,
vinho, amor e cólera - te dou cheias as mãos,
porque tu és a taça que só esperava
os dons da minha vida.
Dormi junto contigo a noite inteira,
enquanto a escura terra gira com vivos e com mortos,
de repente deperto e no meio da sombra meu braço
rodeava tua cintura.
Nem a noite, nem o sonho puderam separar-nos.
Dormi contigo, amor, despertei, e a tua boca
saída do teu sono me deu o sabor a terra,
de água-marinha, de algas, de tua íntima vida
e recebi teu beijo molhado pela aurora
como se me chegasse do mar que nos rodeia.

Pablo Neruda

É a manhã cheia...

"É a manhã cheia de tempestada
no coração do verão.

Como lenços brancos de adeus viajam as nuvens
que o vento sacode com viageiras mãos.

Inumerável coração de vento
pulsando sobre o nosso silêncio apaixonado.

Zumbindo entre as árvores, orquestral e divino,
como uma língua cheia de guerras e de cantos.

Vento que leva em rápido roubo a ramaria
e desvia as flechas latentes dos pássaros.

Vento que a derruba em onda sem espuma
e substância sem peso, e fogos inclinados.

Despedaça-se e submerge o seu volume de beijos
combatido na porta do vento do verão."



Pablo Neruda in
Vinte poemas de Amor e
Uma Canção Desesperada.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Igual a Nume! Mais ainda...



Igual a Nume! Mais ainda que Nume,
É este que, sentado junto a ti,
Goza o supremo bem de te olhar e escutar!
Isso basta afinal
P'ra da razão inteira me privar!
Só de te ver,
Fibra alguma de mim continua a viver.
Sinto os lábios, por ti emudecidos.
Faz-se um barulho estranho em meus ouvidos.
Uma chama subtil a ondular
Envolve-me os meus braços com seu fogo
E a escuridão alarga em meu olhar!

Catulo, poeta latino

POR MUITO TEMPO ACHEI...

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não o lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres
porque a ausência, essa ausência assimilada
ninguém a rouba mais de mim.

Carlos Drummond de Andrade

Hoje deitei-me junto a uma jovem ...

Hoje deitei-me junto a uma jovem pura
como se na margem de um oceano branco,
como se no centro de uma ardente estrela
de lento espaço.

Do seu olhar largamente verde
a luz caía como uma água seca,
em transparentes e profundos círculos
de fresca força.

Seu peito como um fogo de duas chamas
ardia em duas regiões levantado,
e num duplo rio chegava a seus pés,
grandes e claros.

Um clima de ouro madrugava apenas
as diurnas longitudes do seu corpo
enchendo-o de frutas extendidas
e oculto fogo.

Pablo Neruda

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sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Como eu te amo

Como se ama o silêncio a luz, o aroma
O orvalho numa flor, nos céus a estrela,
No largo mar a sombra de uma vela,
Que lá na extrema do horizonte assoma;

Como se ama o clarão da branca lua,
Da noite na mudez os sons da flauta,
As canções saudosíssimas do nauta,
Quando em mole vai-vém a nau flutua,

Como se ama das aves o gemido,
Da noite as sombras e do dia as cores,
Um céu com luzes, um jardim com flores,
Um canto quase em lágrimas sumido;

Como se ama o crepúsculo da aurora,
A mansa viração que o bosque ondeia,
O sussurro da fonte que serpeia,
Uma imagem risonha e sedutora;

Como se ama o calor e a luz querida,
A harmonia, o frescor, os sons, os céus,
Silêncio, e cores, e perfume, e vida
Os pais e a pátria e a virtude e a Deus:

Assim eu te amo, assim; mais do que podem
Dizer-to os lábios meus, - mais do que vale
Cantar a voz do trovador cansada:
O que é belo, o que é justo, santo e grande
Amo em ti. - Por tudo quanto sofro,
Por quanto já sofri, por quanto ainda
Me resta de sofrer, por tudo eu te amo.
O que espero, cobiço, almejo, ou temo
De ti, só de ti pende: oh! nunca saibas
Com quanto amor eu te amo, e de que fonte
Tão terna, quanto amarga o vou nutrindo!
Esta oculta paixão, que mal suspeitas,
Que não vês, não supões, nem te revelo,
Só pode no silêncio achar consolo,
Na dor aumento, intérprete nas lágrimas.

Gonçalves Dias

SEUS OLHOS

Seus olhos - que eu sei pintar
O que os meus olhos cegou -
Não tinham luz de brilhar,
Era chama de queimar;
E o fogo que a ateou
Vivaz, eterno, divino
Como facho do Destino.

Divino, eterno! - e suave
Ao mesmo tempo: mas grave
E de tão fatal poder,
Que, um só momento que a vi,
Queimar toda a alma senti...
nem ficou mais de meu ser,
senão a cinza que ardi.

Almeida Garrett in Folhas Caídas

Não posso adiar o amor

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob as montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este braço
que é uma arma de dois gumes amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração.

António Ramos Rosa

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

AmiúdeNO VALE DOS AFECTOS NINGUÉM ESTÁ

AmiúdeNO VALE DOS AFECTOS NINGUÉM ESTÁ


AmiúdeNo vale dos afectos ninguém está
seguro: Mingua a lembrança esquece-se o rosto, retorna-se
ao eu, os lábios secam, as palavras dormem, os
sonhos dispersam-se, a presença ausenta-se, há o lago de
que não se vê o fundo - E apenas as pequenas
ilusões - um café, o cigarro, a limonada - imitam dois
corações unidos...


(Raul de Carvalho)

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

TU ÉS A TERRA

Tu és a terra em que repouso.
Macia, suave, terna e dura o quanto baste
a que teus braços como tuas pernas
tenham de amor a força que me abraça.

És também pedra qual a terra às vezes
contra que nas arestas me lacero e firo,
mas de musgo coberta refrescando
as próprias chagas de existir contigo.

E sombra de árvores, e flores e frutos,
rendidos a meu gosto e meu sabor.
E uma água cristalina e murmurante
que me segreda só de amor no mundo.

És a terra em que pouso. Não paisagem,
não Madre Teresa nem raptada ninfa
de bosques e montanhas, Terra humana
em que me pouso inteiro e para sempre.

Jorge de Sena - Poesia III - Moraes Editores

POEMA SOBRE A RECUSA

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meus dedos
se ter formado o afago
sem termos sido a cidade
nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor
nem o interior da erva.

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva de ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda.

Maria Teresa Horta

SEGREDO

Não contes do meu
vestido
que tiro pela cabeça

nem que corro os
cortinados
para uma sombra mais espessa

Deixa que feche o
anel
em redor do teu pescoço
com as minhas longas
pernas
e a sombra do meu poço

Não contes do meu
novelo
nem da roca de fiar

nem o que faço
com eles
a fim de te ouvir gritar

Maria Teresa Horta

Sobre o regaço

Sobre o regaço tinha
o livro bem aberto;
tocavam em meu rosto
seus caracóis negros.
Não víamos as letras
nem um nem outro, creio;
mas guardávamos ambos
fundo silêncio.
Por quanto tempo? Nem então
pude sabê-lo.
Sei só que não se ouvia mais que o alento,
que apressado escapava
dos lábios secos.
Só sei que nos voltámos
os dois ao mesmo tempo,
os olhos encontraram-se
e ressoou um beijo.

Gustavo Adolfo Bécquer

Ver-te é como ter à minha frente todo o tempo

Ver-te é como ter à minha frente todo o tempo
é tudo serem para mim estradas largas
estradas onde passa o sol poente
é o tempo parar e eu próprio duvidar mas sem pensar
se o tempo existe se existiu alguma vez
e nem mesmo meço a devastação do meu passado


Ruy Belo

A noite vem buscar secretamente

A noite vem buscar secretamente
através das dobras das cortinas
brilho de sol esquecido em teu cabelo.
Olha, nada mais quero que não seja
ter entre as minhas tuas mãos, e ser
tranquilo e bom, todo cheio de paz.

Fazes-me crescer a alma que estilhaça
o dia-a-dia em cacos; e assim ganha
uma amplitude que é milagre teu:
Nos seus molhes de aurora vão morrer
as primeiras ondas de infinidade.

Rainer Maria Rilke

TOADA DO AMOR

Toada do amor

E o amor sempre nessa toada!
briga perdoa perdoa briga.
Não se deve xingar a vida,
a gente vive, depois esquece.
Só o amor volta para brigar
para perdoar,
amor cachorro bandido trem.

Mas se não fosse ele, também
que graça que a vida tinha?

.............
.............

Carlos Drumond de Andrade

Para o sexo a expirar

Para o sexo a expirar, eu me volto expirante.
Raiz de minha vida, em ti me enredo e afundo.
Amor, amor, amor - o braseiro radiante
que me dá, pelo orgasmo, a explicação do mundo.

Pobre carne senil, vibrando insatisfeita,
a minha se rebela ante a morte anunciada.
Quero sempre invadir essa vereda estreita
onde o gozo maior me propicia a amada.

Amanhã, nunca mais. Hoje mesmo, quem sabe?
enregela-se o nervo, esvai-se-me o prazer
antes que, deliciosa, a exploração acabe.

Pois que o espasmo coroe o instante do meu termo,
e assim possa eu partir, em plenitude o ser,
de sémen aljofrando o irreparável ermo.

Carlos Drummond de Andrade

Quarto em desordem

Na curva perigosa dos cinquenta
derrapei neste amor. Que dor! que pétala
sensível e secreta me atormenta
e me provoca à síntese da flor

que não sabe como é feita: amor
na quinta-essência da palavra, e mudo
de natural silêncio já não cabe
em tanto gesto de colher e amar

a nuvem que de ambígua se dilui
nesse objecto mais vago do que nuvem
e mais indefeso, corpo! Corpo, corpo, corpo

verdade tão final, sede tão vária
a esse cavalo solto pela cama
a passear o peito de quem ama.

Carlos Drummond de Andrade

Sugar e ser sugado pelo amor

Sugar e ser sugado pelo amor
no mesmo instante boca milvalente
o corpo dois em um o gozo pleno
que não pertence a mim nem te pertence
um gozo de fusão difusa transfusão
o lamber o chupar e ser chupado
no mesmo espasmo
é tudo boca boca boca
sessenta e nove vezes boquilíngua.

Carlos Drummond de Andrade

Sob o chuveiro amar

Sob o chuveiro amar, sabão e beijos,
ou na banheira amar, de água vestidos,
amor escorregante, foge, prende-se,
torna a fugir, água nos olhos, bocas,
dança, navegação, mergulho, chuva,
essa espuma nos ventres, a brancura
triangular do sexo -- é água, esperma,
é amor se esvaindo, ou nos tornamos fontes?

Carlos Drummond de Andrade

O amor antigo

O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.

O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza
por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.

Se em toda a parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
o amor antigo, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.

Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.

Carlos Drummond de Andrade

Não te quero porque te quero

Não te quero senão porque te quero,
e de querer-te a não te querer chego,
e de esperar-te quando não te espero,
passa o meu coração do frio ao fogo.
Quero-te só porque a ti te quero,
Odeio-te sem fim e odiando te rogo,
e a medida do meu amor viajante,
é não te ver e amar-te,
como um cego.

Tal vez consumirá a luz de Janeiro,
seu raio cruel meu coração inteiro,
roubando-me a chave do sossego,
nesta história só eu me morro,
e morrerei de amor porque te quero,
porque te quero amor,
a sangue e fogo.

Pablo Neruda

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Tu eras também uma pequena folha

Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.

Pablo Neruda

Esta manhã encontrei o teu nome

Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos
e o teu perfume a transpirar na minha pele. E o corpo
doeu-me onde antes os teus dedos foram aves
de verão e a tua boca deixou um rasto de canções.

No abrigo da noite, soubeste ser o vento na minha
camisola; e eu despi-a para ti, a dar-te um coração
que era o resto da vida - como um peixe respira
na rede exausta. Nem mesmo à despedida

foram os gestos contundentes: tudo o que vem de ti
é um poema. Contudo, ao acordar, a solidão sulcara
um vale nos cobertores e o meu corpo era de novo
um trilho abandonado na paisagem. Sentei-me na cama

e repeti devagar o teu nome, o nome dos meus sonhos,
mas as sílabas caíam no fim das palavras, a dor esgota
as forças, são frios os batentes nas portas da manhã.

(Maria do Rosário Pedreira)

O chão é cama

O chão é cama para o amor urgente,
amor que não espera ir para a cama.
Sobre tapete ou duro piso, a gente
compõe de corpo e corpo a húmida trama.

E para repousar do amor, vamos para a cama.

Carlos Drummond de Andrade

Por um olhar, um mundo

Por um olhar, um mundo
por um sorriso, um céu,
por um beijo...não sei
que te daria eu.

Gustavo Adolfo Bécquer

Nomeei-te no meio dos meus sonhos

Nomeei-te no meio dos meus sonhos
chamei por ti na minha solidão
troquei o céu azul pelos teus olhos
e o meu sólido chão pelo teu amor.

Ruy Belo

FOI UM MOMENTO...

Foi um momento
O em que pousaste
Sobre o meu braço,
Num movimento
Mais de cansaço
Que pensamento,
A tua mão
E a retiraste
Senti ou não?

Não sei. Mas lembro
E sinto ainda
Qualquer memória
Fixa e corpórea
Onde pousaste
A mão que teve
Qualquer sentido
Incompreendido,
Mas tão de leve!...
Tudo isto é nada,
Mas numa estrada
Como é a vida
Há muita coisa
Incompreendida...

Sei eu se quando
A tua mão
Senti pousando
Sobre o meu braço,
E um pouco, um pouco,
No coração,
Não houve um ritmo
Novo no espaço?

Como se tu,
Sem o querer,
Em mim tocasses
Para dizer
Qualquer mistério,
Súbito e etéreo,
Que nem soubesses
Que tinha ser.

Assim a brisa
Nos ramos diz
Sem o saber
Uma imprecisa
Coisa feliz.

Fernando Pessoa - Cancioneiro

Soneto de AMOR

Não me peças palavras, nem baladas,
Nem expressões, nem alma... Abre-me o seio,
Deixa cair as pálpebras pesadas,
E entre os seios me apertes sem receio.

Na tua boca sob a minha, ao meio,
Nossas línguas se busquem, desvairadas...
E que os meus flancos nus vibrem no enleio
Das tuas pernas ágeis e delgadas.

E em duas bocas uma língua..., - unidos,
Nós trocaremos beijos e gemidos,
Sentindo o nosso sangue misturar-se.

Depois... - abre os teus olhos, minha amada!
Enterra-os bem nos meus; não digas nada...
Deixa a Vida exprimir-se sem disfarce!

(José Régio)

POEMA DO AMANTE

Eu te amo
Antes e depois de todos os acontecimentos,
Na profunda imensidade do vazio
E a cada lágrima dos meus pensamentos.
Eu te amo
Em todos os ventos que cantam,
Em todas as sombras que choram,
Na extensão infinita dos tempos
Até à região onde os silêncios moram.
Eu te amo
Em todas as transformações da vida,
Em todos os caminhos do medo,
Na angústia da vontade perdida
E na dor que se veste em segredo.
Eu te amo
Em tudo que estás presente,
No olhar dos astros que te alcançam
E em tudo que ainda estás ausente.
Eu te amo
Desde a criação das águas,
desde a ideia do fogo,
E antes do primeiro riso e da primeira mágoa.
Eu te amo perdidamente
Desde a grande nebulosa
Até depois que o universo caiu sobre mim
Suavemente.


(Adalgisa Nery)

DORME MEU AMOR

Dorme, meu amor, que o mundo já viu
morrer mais este dia e eu estou aqui, de
guarda aos pesadelos.
Fecha os olhos agora e sossega - o pior já
passou há muito tempo; e o vento
amaciou; e a minha mão desvia os passos
do medo. Dorme, meu amor,- a morte
está deitada sob o lençol da terra onde
nasceste e pode levantar-se como um
pássaro assim que adormeceres. Mas
nada temas: as suas asas de sombra não
hão-de derrubar-me - eu já morri muitas
vezes e é ainda da vida que tenho mais
medo. Fecha os olhos agora e sossega - a
porta está trancada; e os fantasmas
da casa que o jardim devorou andam
perdidos nas brumas que lancei ao
caminho. Por isso, dorme, meu amor,
larga a tristeza à porta do meu corpo e
nada temas: eu já ouvi o silêncio, já vi a
escuridão, já olhei a morte debruçada nos
espelhos e estou aqui, de guarda aos
pesadelos - a noite é um poema que
conheço de cor e vou cantar-to até
adormeceres.

(Maria do Rosário Pedreira)

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

DIZE-ME, AMOR, COMO TE SOU QUERIDA

"Dize-me, amor, como te sou querida,
Conta-me a glória do teu sonho eleito,
Aninha-me a sorrir junto ao teu peito,
Arranca-me dos pântanos da vida.
Embriagada numa estranha lida,
Trago nas mãos o coração desfeito,
Mostra-me a luz, ensina-me o preceito
Que me salve e levante redimida!
Nesta negra cisterna em que me afundo,
Sem quimeras, sem crenças, sem ternura,
Agonia sem fé dum moribundo,
Grito o teu nome numa sede estranha,
Como se fosse, amor, toda a frescura
Das cristalinas águas da montanha!"


Florbela Espanca, in
A Mensageira das Violetas