terça-feira, 23 de julho de 2013
domingo, 21 de julho de 2013
Se me deixares
Se me deixares, eu digo
O contrário a toda a gente;
E, neste mundo de enganos,
Fala verdade quem mente.
Tu dizes que a minha boca
Já não acorda desejos,
Já não aquece outra boca,
Já não merece os teus beijos;
Mas, tem cuidado comigo,
Não procures ser ausente:
- Se me deixares, eu digo
O contrário a toda a gente.
António Botto
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sábado, 20 de julho de 2013
ADIVINHAS-ME
Sussurro-te uma frase inacabada
E tu desvendas no meu olhar,
Todo o restante mistério.
Adivinhas-me,
Por entre os dedos que te tocam
E que te escrevem.
E te descrevem...
Adivinhas-me,
Como adivinhas a melodia
Dos fios do meu cabelo,
Soltos numa brisa suave ao teu olhar.
Adivinhas-me,
O arrepio na pele
Quando percorres com as pontas dos dedos,
Os lábios que te beijam em silêncio.
E num sopro de um só sentimento,
Aprendeste a amar(me)
Como ninguém.
DANIELA S. PEREIRA,
in COM ALMA & OLHAR (Edium Ed., 2012)
E tu desvendas no meu olhar,
Todo o restante mistério.
Adivinhas-me,
Por entre os dedos que te tocam
E que te escrevem.
E te descrevem...
Adivinhas-me,
Como adivinhas a melodia
Dos fios do meu cabelo,
Soltos numa brisa suave ao teu olhar.
Adivinhas-me,
O arrepio na pele
Quando percorres com as pontas dos dedos,
Os lábios que te beijam em silêncio.
E num sopro de um só sentimento,
Aprendeste a amar(me)
Como ninguém.
DANIELA S. PEREIRA,
in COM ALMA & OLHAR (Edium Ed., 2012)
sexta-feira, 19 de julho de 2013
Soneto do Amor Total
Amo-te tanto, meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.
Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.
Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.
E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.
PERNOITAS EM MIM
Alberto Raposo Pidwell Tavares Portugal1948 // 1997 Escritor |
Pernoitas em mim
e se por acaso te toco a memória... amas
ou finges morrer
pressinto o aroma luminoso dos fogos
escuto o rumor da terra molhada
a fala queimada das estrelas
é noite ainda
o corpo ausente instala-se vagarosamente
envelheço com a nómada solidão das aves
já não possuo a brancura oculta das palavras
e nenhum lume irrompe para beberes
Al Berto, in 'Rumor dos Fogos' (1983),
e se por acaso te toco a memória... amas
ou finges morrer
pressinto o aroma luminoso dos fogos
escuto o rumor da terra molhada
a fala queimada das estrelas
é noite ainda
o corpo ausente instala-se vagarosamente
envelheço com a nómada solidão das aves
já não possuo a brancura oculta das palavras
e nenhum lume irrompe para beberes
Al Berto, in 'Rumor dos Fogos' (1983),
in O Medo (Assírio & Alvim, 2000)
quinta-feira, 27 de junho de 2013
A Minha única Felicidade és Tu
Até agora ainda nada te disse da nossa vida de família. Devo dizer-te algumas palavras para que saibas com que contar. Temos uma vida muito tranquila, vida que sempre desejei e a que estou realmente habituado. A música ou o teatro vêm por vezes interromper a monotonia desta vida quase monástica. Quando vieres faremos mais ou menos a mesma vida interrompendo no entanto a monotonia pelo teatro, pequenos serões musicais e mesmo dançantes se isso te agradar. Sem isso passaremos os nossos serões ao lado um do outro a conversar e a dar graças ao bom Deus pela nossa felicidade. Devo também falar-te dos meus gostos e das minhas qualidades tanto quanto posso conhecê-los. Sou um grande fumador, um caçador bastante bom, apaixonado pela música e dançarino medíocre. Quanto às qualidades e aos defeitos, já que todos os temos, tenho mais dificuldade em falar deles, já que ninguém é bom juiz em causa própria. Contudo todas as minhas qualidades se fundirão numa só, a de te adorar e não amar a mais ninguém no mundo, anjo da minha vida. Quando estivermos unidos, só viveremos juntos, onde um irá, o outro seguirá, o que um quiser o outro também há-de querer. Peço-te contudo que não me impeças de fumar, é o único vício a que me sinto seriamente preso. Quando se esteve no mar, quando se viu a morte à frente dos olhos, quando se julga que nunca mais veremos os nossos, o cigarro faz as vezes de amigo e de companheiro, fazendo voar os pensamentos tristes, da mesma maneira que o fumo se agita ao vento. Eu viajei bastante servindo na marinha, da qual encontrarás em mim o carácter bastante desenvolvido. Mas se o marinheiro gosta de fazer viagens, quem ele mais ama é quem o conduz à felicidade. Fui marinheiro e no fundo da minha alma continuo a sê-lo e aprendi que a seguir à tempestade vem o bom tempo, a seguir às infelicidades, a felicidade. A minha única felicidade és tu.
Dom Luis, in 'Carta a D. Maria Pia (1862)'
PS - Sei que seria muito próximo desta, a carta que me escreverias caso me escrevesses...
Dom Luis, in 'Carta a D. Maria Pia (1862)'
PS - Sei que seria muito próximo desta, a carta que me escreverias caso me escrevesses...
Esta manhã encontrei o teu nome
Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos
e o teu perfume a transpirar na minha pele. E o corpo
doeu-me onde antes os teus dedos foram aves
de verão e a tua boca deixou um rasto de canções.
No abrigo da noite, soubeste ser o vento na minha
camisola; e eu despi-a para ti, a dar-te um coração
que era o resto da vida - como um peixe respira
na rede mais exausta. Nem mesmo à despedida
foram os gestos contundentes: tudo o que vem de ti
é um poema. Contudo, ao acordar, a solidão sulcara
um vale nos cobertores e o meu corpo era de novo
um trilho abandonado na paisagem. Sentei-me na cama
e repeti devagar o teu nome, o nome dos meus sonhos,
mas as sílabas caíam no fim das palavras, a dor esgota
as forças, são frios os batentes nas portas da manhã.
MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA,
in O CANTO DO VENTO NOS CIPRESTES (2001),
in POESIA REUNIDA Quetzal, 2012)
sexta-feira, 21 de junho de 2013
AMOR
o teu rosto à minha espera, o teu rosto
a sorrir para os meus olhos, existe um
trovão de céu sobre a montanha.
as tuas mãos são finas e claras, vês-me
sorrir, brisas incendeiam o mundo,
respiro a luz sobre as folhas da olaia.
entro nos corredores de outubro para
encontrar um abraço nos teus olhos,
este dia será sempre hoje na memória.
hoje compreendo os rios. a idade das
rochas diz-me palavras profundas,
hoje tenho o teu rosto dentro de mim.
JOSÉ LUÍS PEIXOTO,
in A CASA, A ESCURIDÃO (Temas e Debates, 2002)
quinta-feira, 6 de junho de 2013
NENHUMA MORTE APAGARÁ OS BEIJOS
Nenhuma morte apagará os beijos
e por dentro das casas onde nos amámos ou pelas ruas
[clandestinas da grande cidade livre
estarão para sempre vivos os sinais de um grande amor,
esses densos sinais do amor e da morte
com que se vive a vida.
Aí estarão de novo as nossas mãos.
E nenhuma dor será possível onde nos beijámos.
Eternamente apaixonados, meu amor. Eternamente livres.
Prolongaremos em todos os dedos os nossos gestos e,
profundamente, no peito dos amantes, a nossa alma líquida
[e atormentada
desvenderá em cada minuto o seu segredo
para que este amor se prolongue e noutras bocas
ardam violentos de paixão os nossos beijos
e os corpos se abracem mais e se confundam
mutuamente violando-se, violentando a noite
para que outro dia, afinal, seja possível.
JOAQUIM PESSOA, in OS OLHOS DE ISA, (ed Esp. Litexa, 1982)
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domingo, 2 de junho de 2013
AMAR-TE
Amar-te é inventar palavras que ficaram a faltar
... em frases choradas, é ler-te o desejo abafado na
profundidade do olhar, é adivinhar-te os pecados
intrínsecos na carne – por saciar. É sentir o sabor
dos teus beijos a nuvens de distância e num abraço
decifrar a intensa saudade submersa no tempo.
Amar-te é viver, como minhas, as dores mergulhadas
num peito que é teu, é beber-te as lágrimas do rosto como
se fosse de sede o meu estado. É fazer das minhas
miseras pernas o teu mais ansiado colo, dar-te os
meus ombros como a mais suave das almofadas.
Amar-te. Amar-te é contemplar cada pedaço da tua
pele fundida na minha, é desfazer camas com cheiro
intenso de linho, é acariciar a manta que guardou a
nudez da alma. É desenhar poemas com gotas de suor
e neles descansar. Amar-te é tudo isto e, ainda mais –
ler cada vírgula do teu silêncio.
CARLA PAIS (a publicar)
Amei-te como na vida se ama uma só vez
Amei-te como na vida se ama uma só vez;
e todos os afetos que dividi depois eram
apenas cinzas que evocavam o brilho dessa
... imensa chama. Troquei suspiros e beijos
com muitas outras bocas quando, na minha,
o travo da solidão era uma amarga desculpa
para repartir o pouco que não tinha; mas
em nenhuma quis morder fruto mais
suculento que o silêncio nem permiti que
pousasse sequer o meu nome verdadeiro -
que só nos teus lábios era graça e canção
e eco de loucura. Foi o meu corpo tão vão displicente
naqueles que o cingiram que me faria velha
a tentar recordar-lhes os gestos hesitantes,
as convulsões da pressa e os veios de sal que
descreviam no litoral da pele o aviso de uma
paisagem interior abandonada. Mas de nada
me serviu amar-te assim - pois, ao dizer-te o
que não pude ser longe de ti, digo-te o que sou
e isso há de guardar-te para sempre de voltares.
e todos os afetos que dividi depois eram
apenas cinzas que evocavam o brilho dessa
... imensa chama. Troquei suspiros e beijos
com muitas outras bocas quando, na minha,
o travo da solidão era uma amarga desculpa
para repartir o pouco que não tinha; mas
em nenhuma quis morder fruto mais
suculento que o silêncio nem permiti que
pousasse sequer o meu nome verdadeiro -
que só nos teus lábios era graça e canção
e eco de loucura. Foi o meu corpo tão vão displicente
naqueles que o cingiram que me faria velha
a tentar recordar-lhes os gestos hesitantes,
as convulsões da pressa e os veios de sal que
descreviam no litoral da pele o aviso de uma
paisagem interior abandonada. Mas de nada
me serviu amar-te assim - pois, ao dizer-te o
que não pude ser longe de ti, digo-te o que sou
e isso há de guardar-te para sempre de voltares.
MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA,
in POESIA REUNIDA (Quetzal, 2012)
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quinta-feira, 23 de maio de 2013
SE
Se existe uma chave,
se existe uma chave que não derreta na boca,
... se existe uma boca capaz de se abrir para outra boca,
então eu amo,
eu beijo,
eu deixo de esperar.
Então tu saltas e arrastas contigo toda a terra.
Convidas-me para o teu corpo no gesto
sem mágoa
de um ombro que se expõe.
Tens anos de combustão solar, e moves-te assim:
tocando simultaneamente o resgate e o perigo.
VASCO GATO, in 47 (Ed. de Autor, 2005)Óleo s/ tela: Love and desire, por © Corina Chiril |
Se existe uma chave,
se existe uma chave que não derreta na boca,
... se existe uma boca capaz de se abrir para outra boca,
então eu amo,
eu beijo,
eu deixo de esperar.
Então tu saltas e arrastas contigo toda a terra.
Convidas-me para o teu corpo no gesto
sem mágoa
de um ombro que se expõe.
Tens anos de combustão solar, e moves-te assim:
tocando simultaneamente o resgate e o perigo.
(excerto 2/5 )
Quem lê Sophia de Mello Breyner Andresen
quarta-feira, 15 de maio de 2013
A MEU FAVOR
... Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
esta noite ou uma noite qualquer
A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde tudo recomeça.
ALEXANDRE O'NEILL,
in POESIAS COMPLETAS 1951-1986,
(Imprensa Nacional, Lisboa, 1990)
segunda-feira, 29 de abril de 2013
A flor do sonho, alvíssima, divina
Miraculosamente abriu em mim,
Como se uma magnólia de cetimFosse florir num muro todo em ruína.
Pende em meu seio a haste branda e fina.
E não posso entender como é que, enfim,
Essa tão rara flor abriu assim!…
Milagre… fantasia… ou talvez, sina….
Ó flor, que em mim nasceste sem abrolhos,
Que tem que sejam tristes os meus olhos
Se eles são tristes pelo amor de ti?!…
Desde que em mim nasceste em noite calma,
Voou ao longe a asa da minh´alma
E nunca, nunca mais eu me entendi…
Florbela Espanca,
In Livro de Mágoas, 1919
Miraculosamente abriu em mim,
Como se uma magnólia de cetimFosse florir num muro todo em ruína.
Pende em meu seio a haste branda e fina.
E não posso entender como é que, enfim,
Essa tão rara flor abriu assim!…
Milagre… fantasia… ou talvez, sina….
Ó flor, que em mim nasceste sem abrolhos,
Que tem que sejam tristes os meus olhos
Se eles são tristes pelo amor de ti?!…
Desde que em mim nasceste em noite calma,
Voou ao longe a asa da minh´alma
E nunca, nunca mais eu me entendi…
Florbela Espanca,
In Livro de Mágoas, 1919
quinta-feira, 21 de março de 2013
O AMOR EM VISITA
Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra e seu arbusto de sangue. Com ela encantarei a noite. Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher. Seus ombros beijarei, a pedra pequena do sorriso de um momento. Mulher quase incriada, mas com a gravidade de dois seios, com o peso lúbrico e triste da boca. Seus ombros beijarei. Cantar? Longamente cantar, Uma mulher com quem beber e morrer. Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave o atravessar trespassada por um grito marítimo e o pão for invadido pelas ondas, seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes ele - imagem inacessível e casta de um certo pensamento de alegria e de impudor. Seu corpo arderá para mim sobre um lençol mordido por flores com água. Ah! em cada mulher existe uma morte silenciosa; e enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos, os bordões da melodia, a morte sobe pelos dedos, navega o sangue, desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto. - Ó cabra no vento e na urze, mulher nua sob as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito, mulher de pés no branco, transportadora da morte e da alegria. Dai-me uma mulher tão nova como a resina e o cheiro da terra. Com uma flecha em meu flanco, cantarei. E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue, cantarei seu sorriso ardendo, suas mamas de pura substância, a curva quente dos cabelos. Beberei sua boca, para depois cantar a morte e a alegria da morte. Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro pescoço de planta, onde uma chama comece a florir o espírito. À tona da sua face se moverão as águas, dentro da sua face estará a pedra da noite. - Então cantarei a exaltante alegria da morte. Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela despenhada de sua órbita viva. - Porém, tu sempre me incendeias. Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite imagem pungente com seu deus esmagado e ascendido. - Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura. Entontece meu hálito com a sombra, tua boca penetra a minha voz como a espada se perde no arco. E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo se desfibra - invento para ti a música, a loucura e o mar. Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso, a inspiração. E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa. Vou para ti com a beleza oculta, o corpo iluminado pelas luzes longas. Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos transfiguram-se, tuas mãos descobrem a sombra da minha face. Agarro tua cabeça áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou aquilo que se espera para as coisas, para o tempo - eu sou a beleza. Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada beleza. Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti que me vem o fogo. Não há gesto ou verdade onde não dormissem tua noite e loucura, não há vindima ou água em que não estivesses pousando o silêncio criador. Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos originais. Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra a carne transcendente. E em ti principiam o mar e o mundo. Minha memória perde em sua espuma o sinal e a vinha. Plantas, bichos, águas cresceram como religião sobre a vida - e eu nisso demorei meu frágil instante. Porém teu silêncio de fogo e leite repõe a força maternal, e tudo circula entre teu sopro e teu amor. As coisas nascem de ti como as luas nascem dos campos fecundos, os instantes começam da tua oferenda como as guitarras tiram seu início da música nocturna. Mais inocente que as árvores, mais vasta que a pedra e a morte, a carne cresce em seu espírito cego e abstracto, tinge a aurora pobre, insiste de violência a imobilidade aquática. E os astros quebram-se em luz sobre as casas, a cidade arrebata-se, os bichos erguem seus olhos dementes, arde a madeira - para que tudo cante pelo teu poder fechado. Com minha face cheia de teu espanto e beleza, eu sei quanto és o íntimo pudor e a água inicial de outros sentidos. Começa o tempo onde a mulher começa, é sua carne que do minuto obscuro e morto se devolve à luz. Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras com uma imagem. Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade uma ideia de pedra e de brancura. És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves, que te alimentas de desejos puros. E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola, a sombra canta baixo. Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua, onde a beleza que transportas como um peso árduo se quebra em glória junto ao meu flanco martirizado e vivo. - Para consagração da noite erguerei um violino, beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada darei minha voz confundida com a tua. Oh teoria de instintos, dom de inocência, taça para beber junto à perturbada intimidade em que me acolhes. Começa o tempo na insuportável ternura com que te adivinho, o tempo onde a vária dor envolve o barro e a estrela, onde o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida ingénua e cara, o que pressente o coração engasta seu contorno de lume ao longe. Bom será o tempo, bom será o espírito, boa será nossa carne presa e morosa. - Começa o tempo onde se une a vida à nossa vida breve. Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna salina, imagem fechada em sua força e pungência. E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado em torno das violas, a morte que não beijo, a erva incendiada que se derrama na íntima noite - o que se perde de ti, minha voz o renova num estilo de prata viva. Quando o fruto empolga um instante a eternidade inteira, eu estou no fruto como sol e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada matriz de sumo e vivo gosto. - E as aves morrem para nós, os luminosos cálices das nuvens florescem, a resina tinge a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã. E estás em mim como a flor na ideia e o livro no espaço triste. Se te apreendessem minhas mãos, forma do vento na cevada pura, de ti viriam cheias minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses em minha espuma, que frescura indecisa ficaria no meu sorriso? - No entanto és tu que te moverás na matéria da minha boca, e serás uma árvore dormindo e acordando onde existe o meu sangue. Beijar teus olhos será morrer pela esperança. Ver no aro de fogo de uma entrega tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus será criar-te para luz dos meus pulsos e instante do meu perpétuo instante. - Eu devo rasgar minha face para que a tua face se encha de um minuto sobrenatural, devo murmurar cada coisa do mundo até que sejas o incêndio da minha voz. As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso jovem da carne aspiram longamente a nossa vida. As sombras que rodeiam o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto seu bárbaro fulgor, o rosto divino impresso no lodo, a casa morta, a montanha inspirada, o mar, os centauros do crepúsculo - aspiram longamente a nossa vida. Por isso é que estamos morrendo na boca um do outro. Por isso é que nos desfazemos no arco do verão, no pensamento da brisa, no sorriso, no peixe, no cubo, no linho, no mosto aberto - no amor mais terrível do que a vida. Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz o perfume da tua noite. Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua e branca das mulheres. Correm em mim o lacre e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca ao círculo de meu ardente pensamento. Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam sobre o teu sorriso imenso. Em cada espasmo eu morrerei contigo. E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente das urzes, um silêncio, uma palavra; traz da montanha um pássaro de resina, uma lua vermelha. Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos, casa de madeira do planalto, rios imaginados, espadas, danças, superstições, cânticos, coisas maravilhosas da noite. Ó meu amor, em cada espasmo eu morrerei contigo. De meu recente coração a vida inteira sobe, o povo renasce, o tempo ganha a alma. Meu desejo devora a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma de crepúsculos e crateras. Ó pensada corola de linho, mulher que a fome encanta pela noite equilibrada, imponderável - em cada espasmo eu morrerei contigo. E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro da tua entrega. Bichos inclinam-se para dentro do sono, levantam-se rosas respirando contra o ar. Tua voz canta o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com o lento desejo do teu corpo. Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo eu morrerei contigo. Herberto Helder
Fugir com o cientista
Letra de: João Afonso Lima
Música de: João Afonso Lima
...
estaremos juntos separados como amantes
nesta viagem com água sem retorno
entre as queimadas vento norte viajante
é o cacimbo africano moçambique
ao terraço e à varanda do avô
passeios da dimensão do anarquista
ao teatro ao professor à fantasia
no matope um sono de marimbas
limpidez das areias, tem
em teias de caniço
fugir com o cientista, tem
estrelas a perder de vista
são trovoadas que caem no capim
o som do zinco o sentido às caminhadas
passos compridos e a voz dos velhos sábios
são a memória da sombra das acácias
ondas que cavam as areias do bilene
e as histórias que contava josé bila
ventos parados ao subir às papaieiras
e a maravilha do canto do magaíça
limpidez das areias, tem
em teias de caniço
fugir com o cientista, tem
estrelas a perder de vista
Música de: João Afonso Lima
...
estaremos juntos separados como amantes
nesta viagem com água sem retorno
entre as queimadas vento norte viajante
é o cacimbo africano moçambique
ao terraço e à varanda do avô
passeios da dimensão do anarquista
ao teatro ao professor à fantasia
no matope um sono de marimbas
limpidez das areias, tem
em teias de caniço
fugir com o cientista, tem
estrelas a perder de vista
são trovoadas que caem no capim
o som do zinco o sentido às caminhadas
passos compridos e a voz dos velhos sábios
são a memória da sombra das acácias
ondas que cavam as areias do bilene
e as histórias que contava josé bila
ventos parados ao subir às papaieiras
e a maravilha do canto do magaíça
limpidez das areias, tem
em teias de caniço
fugir com o cientista, tem
estrelas a perder de vista
quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013
AMAR
Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho,
e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa,
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE,
in ANTOLOGIA POÉTICA, (12ª ed., J. Olympio, 1978)
PARA TI
Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo
Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre
Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida
MIA COUTO,
in RAÍZ DE ORVALHO E OUTROS POEMAS, (Caminho, 1999)
terça-feira, 29 de janeiro de 2013
A COR DO AMOR
A cor do meu amor
É difícil de encontrar
Tão lenta
É a ternura que gasto
No ato sublime
De beber-te
A cor do meu amor
Deixa marcas no teu corpo
Vestígios frescos de mim
E a imperiosa vontade
De saber-te
Saciada
De dedos
Sexo
Segredos
Quanto aos beijos
Mordem-se
Ao compasso dos desejos
Doce
Como pitangas
A rebentar de sumo
EDGARDO XAVIER, in AMOR DESPENTEADO (Casa das Cenas, 2007)
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