domingo, 3 de maio de 2009

BOM-DIA, MÃE!

Bom-Dia, Mãe!
Senta-te ao meu lado, que eu vou contar-te a viagem que eu fiz. Dá-me a tua mão para que eu a conte bem!
Dei a volta ao mundo, fiz o itinerário universal. Tudo consta do meu diário íntimo onde é memorável a viagem que eu fiz desde o universo até ao meu peito quotidiano. Vim de muito longe até ficar dentro do meu próprio peito e defendido pelo meu próprio corpo.
Durante a viagem encontrei tudo disposto de antemão para que nunca me apartasse dos meus sentidos. E assim aconteceu sempre desde aquele dia inolvidável em que reparei que tinha olhos da minha própria cara. Foi precisamente nesse dia inolvidável que eu soube que tudo o que há no universo podia ser visto com os dois olhos que estão na nossa própria cara. Não foi, portanto, sem orgulho que constatei que era precisamente por causa de cada um de nós que havia o universo.
E assim foi que todas as coisas que a princípio me pareciam tão estranhas começaram logo desde esse dia inolvidável a dirigirem-se-me e a interrogarem-me, quando ainda ontem era eu que lhes perguntava tudo. Foi-me fácil compreender que o universo era precisamente o resultado de haver quem tivesse olhos na própria cara. Muito maior foi o meu orgulho , portanto, quando tive a certeza de que hoje o universo esperava ansiosamente por cada um de nós. Ontem, cada um de nós viajava por todas as partes do universo, com aquele desejo legítimo de se encontrar, e se a viagem demorou mais do que devia é porque não seria fácil acreditar imediatamente que cada um de nós estava , na verdade, em todas as partes do universo. Confesso que pude supor logo de entrada que o papel de que seríamos incumbidos cá na terra fosse precisamente o mais importante de todos.
Ainda ontem o universo me parecia um gigante colossal capaz de me atropelar sem querer; e enquanto eu procurava a maneira de não ficar espezinhado pelo gigante, quem poderia, Mãe!, ter-me convencido de que éramos nós próprios o gigante?
Todas as coisas do universo aonde, por tanto tempo, me procurei, são as mesmas que encontrei dentro do peito no fim da viagem que fiz pelo o universo.

Almada Negreiros in Obra Completa
Editora Nova Aguilar S.A. 1997

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