quinta-feira, 27 de junho de 2013

A Minha única Felicidade és Tu

Até agora ainda nada te disse da nossa vida de família. Devo dizer-te algumas palavras para que saibas com que contar. Temos uma vida muito tranquila, vida que sempre desejei e a que estou realmente habituado. A música ou o teatro vêm por vezes interromper a monotonia desta vida quase monástica. Quando vieres faremos mais ou menos a mesma vida interrompendo no entanto a monotonia pelo teatro, pequenos serões musicais e mesmo dançantes se isso te agradar. Sem isso passaremos os nossos serões ao lado um do outro a conversar e a dar graças ao bom Deus pela nossa felicidade. Devo também falar-te dos meus gostos e das minhas qualidades tanto quanto posso conhecê-los. Sou um grande fumador, um caçador bastante bom, apaixonado pela música e dançarino medíocre. Quanto às qualidades e aos defeitos, já que todos os temos, tenho mais dificuldade em falar deles, já que ninguém é bom juiz em causa própria. Contudo todas as minhas qualidades se fundirão numa só, a de te adorar e não amar a mais ninguém no mundo, anjo da minha vida. Quando estivermos unidos, só viveremos juntos, onde um irá, o outro seguirá, o que um quiser o outro também há-de querer. Peço-te contudo que não me impeças de fumar, é o único vício a que me sinto seriamente preso. Quando se esteve no mar, quando se viu a morte à frente dos olhos, quando se julga que nunca mais veremos os nossos, o cigarro faz as vezes de amigo e de companheiro, fazendo voar os pensamentos tristes, da mesma maneira que o fumo se agita ao vento. Eu viajei bastante servindo na marinha, da qual encontrarás em mim o carácter bastante desenvolvido. Mas se o marinheiro gosta de fazer viagens, quem ele mais ama é quem o conduz à felicidade. Fui marinheiro e no fundo da minha alma continuo a sê-lo e aprendi que a seguir à tempestade vem o bom tempo, a seguir às infelicidades, a felicidade. A minha única felicidade és tu.

Dom Luis, in 'Carta a D. Maria Pia (1862)'


PS - Sei que seria muito próximo desta, a carta que me escreverias caso me escrevesses...

Esta manhã encontrei o teu nome





Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos
e o teu perfume a transpirar na minha pele. E o corpo
doeu-me onde antes os teus dedos foram aves
de verão e a tua boca deixou um rasto de canções.


No abrigo da noite, soubeste ser o vento na minha
camisola; e eu despi-a para ti, a dar-te um coração
que era o resto da vida - como um peixe respira
na rede mais exausta. Nem mesmo à despedida


foram os gestos contundentes: tudo o que vem de ti
é um poema. Contudo, ao acordar, a solidão sulcara
um vale nos cobertores e o meu corpo era de novo
um trilho abandonado na paisagem. Sentei-me na cama


e repeti devagar o teu nome, o nome dos meus sonhos,
mas as sílabas caíam no fim das palavras, a dor esgota
as forças, são frios os batentes nas portas da manhã.


MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA,
in O CANTO DO VENTO NOS CIPRESTES (2001),
in POESIA REUNIDA Quetzal, 2012)

sexta-feira, 21 de junho de 2013

AMOR


o teu rosto à minha espera, o teu rosto

a sorrir para os meus olhos, existe um

trovão de céu sobre a montanha.



as tuas mãos são finas e claras, vês-me

sorrir, brisas incendeiam o mundo,

respiro a luz sobre as folhas da olaia.



entro nos corredores de outubro para

encontrar um abraço nos teus olhos,

este dia será sempre hoje na memória.



hoje compreendo os rios. a idade das

rochas diz-me palavras profundas,

hoje tenho o teu rosto dentro de mim.

 

JOSÉ LUÍS PEIXOTO,

in A CASA, A ESCURIDÃO (Temas e Debates, 2002)

quinta-feira, 6 de junho de 2013

NENHUMA MORTE APAGARÁ OS BEIJOS

 

Nenhuma morte apagará os beijos
e por dentro das casas onde nos amámos ou pelas ruas
[clandestinas da grande cidade livre
estarão para sempre vivos os sinais de um grande amor,
esses densos sinais do amor e da morte
com que se vive a vida.


Aí estarão de novo as nossas mãos.
E nenhuma dor será possível onde nos beijámos.
Eternamente apaixonados, meu amor. Eternamente livres.
Prolongaremos em todos os dedos os nossos gestos e,
profundamente, no peito dos amantes, a nossa alma líquida
[e atormentada


desvenderá em cada minuto o seu segredo
para que este amor se prolongue e noutras bocas
ardam violentos de paixão os nossos beijos
e os corpos se abracem mais e se confundam
mutuamente violando-se, violentando a noite
para que outro dia, afinal, seja possível.
 

JOAQUIM PESSOA, in OS OLHOS DE ISA, (ed Esp. Litexa, 1982)

domingo, 2 de junho de 2013

AMAR-TE


Amar-te é inventar palavras que ficaram a faltar
...
em frases choradas, é ler-te o desejo abafado na
profundidade do olhar, é adivinhar-te os pecados
intrínsecos na carne – por saciar. É sentir o sabor

dos teus beijos a nuvens de distância e num abraço
decifrar a intensa saudade submersa no tempo.
Amar-te é viver, como minhas, as dores mergulhadas
num peito que é teu, é beber-te as lágrimas do rosto como

se fosse de sede o meu estado. É fazer das minhas
miseras pernas o teu mais ansiado colo, dar-te os
meus ombros como a mais suave das almofadas.
Amar-te. Amar-te é contemplar cada pedaço da tua

pele fundida na minha, é desfazer camas com cheiro
intenso de linho, é acariciar a manta que guardou a
nudez da alma. É desenhar poemas com gotas de suor
e neles descansar. Amar-te é tudo isto e, ainda mais –

ler cada vírgula do teu silêncio.


 
CARLA PAIS (a publicar) 

Amei-te como na vida se ama uma só vez

Amei-te como na vida se ama uma só vez;
e todos os afetos que dividi depois eram
apenas cinzas que evocavam o brilho dessa
...
imensa chama. Troquei suspiros e beijos

com muitas outras bocas quando, na minha,
o travo da solidão era uma amarga desculpa
para repartir o pouco que não tinha; mas

em nenhuma quis morder fruto mais
suculento que o silêncio nem permiti que
pousasse sequer o meu nome verdadeiro -
que só nos teus lábios era graça e canção

e eco de loucura. Foi o meu corpo tão vão displicente
naqueles que o cingiram que me faria velha
a tentar recordar-lhes os gestos hesitantes,
as convulsões da pressa e os veios de sal que
descreviam no litoral da pele o aviso de uma
paisagem interior abandonada. Mas de nada

me serviu amar-te assim - pois, ao dizer-te o
que não pude ser longe de ti, digo-te o que sou
e isso há de guardar-te para sempre de voltares.
 

 
MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA,
in POESIA REUNIDA (Quetzal, 2012)
 
 
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