quarta-feira, 25 de março de 2009

Confissão a uma violeta

Eu confesso-me a ti, - doce flor delicada -
Recolhida, modesta, e sol da singeleza,
Das vezes que através da verde natureza
Fiz soar com orgulho a bulha do meu nada!

Em vez de amar a vida humilde, chã, calada,
Do sábio estóico e são, exemplo de inteireza,
Quantas vezes cuspi no Justo e na Beleza
E cri-me o Fogo e a Luz da geração criada!

Orgulho! orgulho vão! Vaidade e mais vaidade!
Como disse o rei sábio e justo à claridade
Dos astros da Judeia, e ao giro dos planetas...

Feliz de quem, como eu, ri das Academias,
E estuda as novas leis e as grandes Teorias,
Nas folhas feminis e meigas das violetas.

Gomes Leal in Claridades do Sul
Assírio & Alvim

terça-feira, 24 de março de 2009

A um corpo perfeito

Nenhum corpo mais lácteo e sem defeito,
Mais róseo, escultural, ou feminino,
Pode igualar-se ao seu branco e divino
Imóvel, nu, sobre o comprido leito! -

Nada lhe iguala! - O ferro do assassino
Podia, hoje, matá-la, que o meu peito
Seria o esquife embalsamado e fino
Daquele corpo sem rival perfeito.

Por isso é muito altiva e apetecida.
E o gozo sensual de a ver vencida
Há-de ser forte, estranho, singular...

Como o das cousas dignas de castigo,
- Ou qual amante sacerdote antigo,
Derrubando uma deusa dum altar.

Gomes Leal in Claridades do Sul
Assírio & Alvim

O amor do vermelho

A ideia de teu corpo branco e amado,
Beleza escultural e triunfante,
Persegue-me, mulher, a todo o instante,
- Como o assassino o sangue derramado!

Quando teu corpo pálido, beijado,
Abandonas ao leito - palpitante,
Quem jamais contemplou, em noite amante,
Tentação mais cruel, tom mais nevado?

-No entanto - duro, excêntrico desejo!
- Quisera, às vezes, que a dormir te vejo,
Tranquila, branca, inerme, unida a mim...

Que o teu sangue corresse de repente,
Fascinação da Cor! - e estranhamente,
Te colorisse, pálido marfim.

Gomes Leal in Claridades do Sul
Assírio & Alvim

A lanterna

O sábio antigo andou pelas ruas d'Atenas,
Com a lanterna acesa, errante, à luz do dia,
Buscando o varão forte e justo da Utopia,
Privado de paixões e d'emoções terrenas.

Eu também, que aborreço as coisas vãs, pequenas,
E que mais alto pus a sã Filosofia,
Há muito busco em vão - há muito, quem diria!-
O mais cruel ideal das concepções serenas.

Tenho buscado em balde, em vão por todo o mundo.
Esconde-se o ideal no sítio mais profundo,
No mar, no inferno, em tudo, aonde existe a dor...

De sorte que hoje, enfim, descrente, resignado,
Concentrei-me em mim só, num tédio indignado,
E apaguei a lanterna. - É um sonho o Amor.

Gomes Leal in Claridades do Sul
Assírio & Alvim

A SENHORA DE BRABANTE

Tem um leque de plumas gloriosas,
na sua mão macia e cintilante,
de anéis de pedras finas preciosas
a Senhora Duquesa de Brabante.

Numa cadeira d'espaldar dourado,
escuta os galanteios dos barões.
- É noite: e, sob o azul morno e calado,
concebem os jasmins e os corações.

Recorda o senhor Bispo acções passadas.
Falam damas de jóias e cetins.
Tratam barões de festas e caçadas
à moda goda: - aos toques dos clarins,

Mas a Duquesa é triste. - Oculta mágoa
vela seu rosto de um solene véu.
- Ao luar, sobre os tanques chora a água...
- Cantando, os rouxinóis lembram o céu...

Dizem as lendas que satã vestido
de uma armadura feita de um brilhante,
ousou falar do seu amor florido
à Senhora Duquesa de Brabante.

Dizem que o ouviram ao luar nas águas,
mais louro do que o sol, marmóreo, e lindo,
tirar de uma viola estranhas mágoas,
pelas noites que os cravos vêm abrindo...

Dizem mais que na seda das varetas
do seu leque ducal de mil matizes...
Satã cantara as suas tranças pretas,
- e os seus olhos mais fundos que raízes!

Mas a Duquesa é triste. - Oculta mágoa
vela seu rosto de um solene véu.
- Ao luar, sobre os tanques chora a água...
- Cantando, os rouxinóis lembram o céu.

O que é certo é que a pálida Senhora,
a transcendente Dama de Brabante,
tem um filho horroroso... e de quem cora
o pai, no escuro, passeando errante.

É um filho horroroso e jamais visto!-
Raquítico, enfezado, excepcional,
todo disforme, excêntrico, malquisto,
- pêlos de fera, e uivos de animal!

Parece irmão dos cerdos ou dos ursos,
aborto e horror da brava Natureza...
- Em vão tentam barões, com mil discursos,
desenrugar a fronte da Duquesa.

Sempre a Duquesa é triste. - Oculta mágoa
vela seu rosto de um solene véu.
- Ao luar, sobre os tanques chora a água...
Cantando, os rouxinóis lembram o céu...

Ora o monstro morreu. - Pelas arcadas
do palácio retinem festas, hinos.
Riem nobres, vilões, pelas estradas.
O próprio pai se ri, ouvindo os sinos...

Riem-se os monges pelo claustro antigo.
Riem vilões trigueiros das charruas.
Riem-se os padres, junto ao seu jazigo.
Riem-se nobres e peões nas ruas.

Riem aias, barões, erguendo os braços.
Riem, nos pátios, os truões também.
Passeia o duque, rindo, nos terraços.
- Só chora o monstro, em alto choro, a mãe!...

Só, sobre o esquife do disforme morto,
chora, sem trégua, a mísera mulher.
Chama os nomes mais ternos ao aborto...
- Mesmo assim feio, a triste mãe o quer!

Só ela chora pelo morto!... A mágoa
lhe arranca gritos que ninguém mais deu!
- Ao luar, sobre os tanques chora a água...
- Cantando, os rouxinóis lembram o céu...

Gomes Leal in Claridades do Sul

Assírio & Alvim

domingo, 22 de março de 2009

AMOR REENCONTRADO

... Ela apertou-lhe a mão, e depois soltou-a e aproximou-se. Deu-lhe o braço, embalando-o e descansou a cabeça sobre o ombro dele. Ele podia sentir-lhe o cheiro, doce como a chuva, quente. Ela falou suavemente:
- Lembras-te de me levares a casa, depois do festival? Perguntei-te se querias voltar a ver-me. Tu apenas assentiste sem dizer uma palavra. Não era muito convincente.
- Nunca conheci ninguém como tu antes. Não o conseguia evitar. Não sabia o que dizer.
- Eu sei. Nunca me conseguiste esconder nada. Os teus olhos traíram-te sempre. Tinhas os olhos mais maravilhosos que eu alguma vez vira.
Ela fez então uma pausa, depois levantou a cabeça do ombro dele e olhou-o directamente. Quando falou, a sua voz soou pouco mais alto que um murmúrio.
- Acho que te amei mais nesse Verão do que alguma vez amei alguém.
Os relâmpagos brilharam de novo. Nos momentos de calmaria antes do trovão, os olhos deles encontraram-se enquanto tentavam desfazer os catorze anos, ambos sentindo a mudança ocorrida na véspera. Quando o trovão soou por fim, Noah suspirou...

Nicholas Sparks in Diário da Nossa Paixão
Editorial Presença

PRIMAVERA

É Primavera agora, meu Amor!
O campo despe a veste de estamenha;
Não há árvore nenhuma que não tenha
O coração aberto, todo em flor!

Ah! Deixa-te vogar, calmo, ao sabor
Da vida... não há bem que nos não venha
Dum mal que o nosso orgulho em vão desdenha!
Não há bem que não possa ser melhor!

Também despi meu triste burel pardo,
E agora cheiro a rosmaninho e a nardo
E ando agora tonta, à tua espera...

Pus rosas cor-de-rosa em meus cabelos...
Parecem um rosal! Vem desprendê-los!
Meu Amor, meu Amor, é Primavera!...

Florbela Espanca in Sonetos
Livraria Tavares Martins

Amour

"Amour,
Un jour sans pluie,
Des baisers à la folie
Et moi et toi et nous,
Et le plaîsir
D'être le coeur qui t'aime.
Et la mémoire de souvenirs
Et aussi,
Les souvenirs de la mémoire.
Rêves.
Tu es mon rêve,
Mon amour..."


Rouxinol (21.03.2009 - 11:40)

sábado, 21 de março de 2009

Silêncios de silêncio

"Os silêncios da fala
São tantos
Os silêncios da fala...
De sede.
De saliva.
De suor.
Silêncios de sílex
No corpo do silêncio.
Silêncios de vento.
De mar.
E de turpor.
De amor.
Depois há jarros
Com rosas de silêncio.
Os gemidos
Nas camas.
As ancas.
O sabor...
O silêncio que posto
Em cima do silêncio
Usurpa do silêncio
O seu magro labor..."


Maria Teresa Horta (17.03.2009 - 14:46)

terça-feira, 10 de março de 2009

Canção do amor sereno

"Vem sem receio: eu te recebo
Como um dom dos deuses do deserto
Que decretaram minha trégua , e permitiram
Que o mel de teus olhos me invadisse.

Quero que o meu amor te faça livre,
Que meus dedos não te prendam
Mas contornem teu raro perfil
Como lábios tocam um anel sagrado.

Quero que o meu amor te seja enfeite
E conforto, porto de partida para a fundação
Do teu reino, em que a sombra
Seja abrigo e ilha.

Quero que o meu amor te seja leve
Como se dançasse numa praia uma menina."



Lya Luft

Tenho Tanto Sentimento

"Tenho tanto sentimento
Que é freqüente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.


Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.


Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar."


Fernando Pessoa

segunda-feira, 9 de março de 2009

POEMA EM LINHA RECTA

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente neste mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Fernando Pessoa in Obra Poética
Companhia José Aguilar Editora

Poema de un amor



no sabes cuanto te quiero

Camilo Sesto

LE DORMEUR DU VAL

C'est un trou de verdure où chante une rivière
Accrochant follement aux herbes des haillons
D'argent; où le soleil, de la montagne fière,
Luit: c'est un petit val qui mousse de rayons.

Un soldat jeune, bouche ouverte, tête nue,
Et la nuque baignant dans le frais cresson bleu,
Dort; il est étendu dans l'herbe, sous la nue,
Pâle dans son lit vert, où la lumière pleut.

Les pieds dans les glaïeuls, il dort. Souriant comme
Sourirait un enfant malade, il fait un somme:
Nature, berce-le chaudement: il a froid.

Les parfums ne font pas frissonner sa narine;
Il dort dans le soleil, la main sur sa poitrine
Tranquille. Il a deux trous rouges au côté droit.

Arthur Rimbaud in Poésies complètes
Le Livre de Poche Classique

O MENINO DA SUA MÃE

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas traspassado
- Duas, de lado a lado -
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
"O menino da sua mãe".

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lha a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há prece:
"Que volte cedo, e bem!"
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto , e apodrece,
O menino da sua mãe.


Fernando Pessoa in Obra Poética
Companhia José Aguilar Editora

domingo, 8 de março de 2009

BELA D'AMOR

Pois essa luz cintilante
Que brilha no teu semblante
Donde lhe vem o splendor?
Não sentes no peito a chama
Que aos meus suspiros se inflama
E toda reluz de amor?

Pois a celeste fragância
Que te sentes exalar,
Pois, dize, a ingénua elegância
Com que te vês ondular
Como se baloiça a flor
Na primavera em verdor
Dize, dize: a natureza
Pode dar tal gentileza?
Quem ta deu senão amor?

Vê-te a esse espelho, querida,
Ai! vê-te por tua vida,
E diz se há no céu estrela,
Diz-me se há no prado flor
Que Deus fizesse tão bela
Como te faz meu amor.


Almeida Garret in Folhas Caídas

sábado, 7 de março de 2009

LE PONT MIRABEAU

Sous le pont Mirabeau coule la Seine
Et nos amours
Faut-il qu'il m'en souvienne
La joie venait toujours après la peine
***
Vienne la nuit sonne l'heure
Les jours s'en vont je demeure
***
Les mains dans les mains restons face à face
Tandis que sous
Le pont de nos bras passe
Des éternels regards l'onde si lasse
***
Vienne la nuit sonne l'heure
Les jours s'en vont je demeure
***
L'amour s'en va comme cette eau courante
L'amour s'en va
Comme la vie est lente
Et comme l'Espérance est violente
***
Vienne la nuit sonne l'heure
Les jours s'en vont je demeure
***
Passent les jours et passent les semaines
Ni temps passé
Ni les amours reviennent
Sous le pont Mirabeau coule la Seine
***
Vienne la nuit sonne l'heure
Les jours s'en vont je demeure
-*-
Guillaume Apollinaire in Alcools
(Nouveaux Classiques Larousse)

DEMAIN, DÈS L'AUBE

Demain, dès l'aube, à l'heure où blanchit la campangne,
Je partirai. Vois-tu, je sais que tu m'attends.
J'irai par la forêt, j'irai par la montagne.
Je ne puis demeurer loin de toi plus longtemps.

Je marcherai les yeux fixés sur mes pensées,
Sans rien voir au dehors, sans entendre aucun bruit,
Seul, inconnu, le dos courbé, les mains croisées,
Triste, et le jour pour moi sera comme la nuit.

Je ne regarderai ni l'or du soir qui tombe,
Ni les voiles au loin descendant vers Harfleur,
Et quand j'arriverai, je mettrai sur ta tombe
Un bouquet de houx vert et de bruyère en fleur.

Victor Hugo in Les Contemplations

terça-feira, 3 de março de 2009

Cantiga de Amor



Rádio Macau